Marcelo Fonseca*
A obra de arte apresenta, necessariamente, um caráter contraditório em relação à realidade, sendo a contradição o núcleo característico da forma da relação entre a arte e a realidade – que Adorno chama de “negatividade”. Por outro lado, é justamente esse caráter negativo da obra de arte o que constitui a sua “positividade” no que se refere à utopia, entendida como instância que extrapola os limites da realidade.
A realidade: do que se trata? Trata-se do resultado, digamos, consistente de um quadro histórico, consistente no sentido de sua coerência e de sua materialidade. Assim, confrontar a realidade implica confrontar a história, que lhe serve de suporte. No que se refere à obra de arte em sua relação com a realidade, esta relação é, portanto, a mesma que se estabelece entre a obra de arte e a história. Finalmente, a nossa hipótese: a situação da obra de arte em relação à história e a realidade é, invariavelmente, a da utopia, visto que aquele caráter de extrapolação, entendido como negação da realidade, cria, como seu momento de positividade, a possibilidade de reordenamento no âmbito da história: a emergência do que entendemos como “novo”.
Afirmamos que a relação da obra de arte com a realidade é contraditória e, logo em seguida, que ela extrapola os limites da realidade. Isso quer dizer que essa extrapolação é o modo de proceder da contradição. É o elemento contraditório da arte em relação à realidade que se encontra no cerne do salto que a obra dá em relação à realidade. Este salto a obra dá não exatamente para “fora” da realidade, mas para o seu cerne, o núcleo opaco de toda realidade: a sua contradição, aquilo que, na realidade, dissolve a consistência em que ela se apresenta. Em outras palavras, o que a obra de arte produz é, neste sentido, a demarcação do núcleo contraditório da realidade e, com isso, ela promove a dissolução da consistência da realidade – não é por outro motivo que a acusação de “delirante” aos grandes artistas é um lugar comum.
Isto produz, como efeito perceptivo, um furo, uma borda interior à própria realidade. Na música, esse furo é o silêncio. É aí, entre o vazio e o silêncio, que se localiza a obra de arte, bem como é daí, do vazio constitutivo das coisas e do silêncio constitutivo dos fatos, que emerge a utopia.
*Marcelo Fonseca é artista visual, mestre em Letras e doutor em Artes (EBA-UFRJ).
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