Subitamente a guerra
de pé
ao fundo do corredor.
Hakusen Watanabe
No mundo administrado, reificado, o pensamento se constrange às operações instrumentais. O esvaziamento do humano, prefigurado no teatro de Beckett, num mundo em que nada floresce, inscreve-se no que Adorno chamou de catástrofe permanente. Não é um evento catastrófico o que institui ou caracteriza este mundo, mas a ausência do evento. A bala entrará por um ouvido da humanidade e sairá pelo outro, já havia dito Karl Kraus, de forma algo profética, em meio à primeira Guerra. As cicatrizes não guardam nenhuma experiência. O tempo da catástrofe é sem tempo. Daí a urgência do pensamento.
Sumário
Estrelas a luzir da noite. Para Luiz Antonio Peixoto.
Carla Appolinario, André Lucas Antunes Dias, Ygor Bittencourt de Andrade, Pablo Gabriel Jorge Alazraqui Fernandes, Gabriel Medeiros Samoré Francisco, Ágatha Barros Dias Pinho, Maria Aparecida Silva e Ohara Sampaio Pereira
Luiz Antonio da Silva Peixoto, docente da Universidade Federal de Juiz de Fora, fez sua passagem deste mundo em maio deste ano. Professor querido, deixou marcas profundas nas vidas que tocou com sua generosidade, com seu afeto. Com ele e nele, o pensamento crítico não se dissociava de uma prática sensível - atenta, cuidadosa e acolhedora -, exatamente como tem que ser. Suas interlocuções com Marcuse, Adorno, Horkheimer e Benjamin geraram inquietações e reflexões radicais sobre o mundo em que vivemos que se frutificaram em uma nova geração que, levando adiante seu legado, não paralisa o pensamento ante a catástrofe e a barbárie, pois aprendeu que a esperança não é afeto compassivo, mas motor das transformações necessárias.
Aqui, uma breve, porém potente e vívida, homenagem à sua vida e ao seu trabalho, escrita por sua esposa e ex alunxs da UFJF, em quem a presença de Luiz insistirá como um farol, ou como brilho fulgurante de uma estrela, a luzir na noite do mundo.
O inverno da nossa desesperança
Leomir Cardoso Hilário
Neste ensaio, o autor discute a subjetividade em tempos de crise do capitalismo, dividindo sua análise em duas partes: "o verão da nossa desesperança" e "o inverno da nossa desesperança". O "verão" representa o período pós-Muro de Berlim, quando a ausência de alternativas ao capitalismo era aceita com uma "desesperança alegre". Utopia e crítica foram abandonadas e o futuro era visto como uma extensão do presente. Já o "inverno", descreve o esgotamento desse cenário, onde o neoliberalismo se torna autoritário e cria uma força niilista. A cultura se esgota e o conservadorismo assume o papel de agente de mudança, buscando restaurar um passado perdido.
Apocalípticos e mal integrados:
Günther Anders, o Terceiro Mundo e a decomposição do Primeiro
Felipe Catalani
Neste artigo, o autor explora a obra de Günther Anders e a discrepância na recepção de suas ideias sobre a civilização tecnológica e o apocalipse. Para Anders, a preocupação com a ameaça nuclear seria um "luxo" nos países subdesenvolvidos, que lutavam pela subsistência diária. O artigo ressalta a "não-simultaneidade histórica" dessas diferentes realidades, em que a crítica à técnica, válida para o centro industrializado, parecia "insana" na periferia do capitalismo, que via na tecnologia a chance de superação da pobreza. O artigo conclui que a visão de Anders tem uma validade mais abrangente do que ele mesmo acreditava, especialmente na atual "simultaneidade apocalíptica" de crises globais.
Tornar-se cúmplice:
Günther Anders e as duas raízes do monstruoso na primeira carta de Nós, filhos de Eichmann
Felipe Vieira
Propomos, ao longo do presente artigo, cumprir com três tarefas: demonstrar como a escrita de Anders se coadunava com seu ativismo político; num segundo momento vamos nos debruçar sobre o livro “Nós, filhos de Eichmann” propondo um esquema de leitura da primeira carta nele contida; por fim, investigaremos as noções de “discrepância prometeica” e “caráter maquinal do mundo” e, com que isso seja possível, faremos recurso de demais ensaios e livros de Anders de forma a desenvolver mais ricamente os conceitos expostos.
DOI 10.5281/zenodo.16848846
[Acesse o artigo]
O Brasil e o "Novo Tempo do Mundo":
a construção de uma memória liberal-democrática sobre a ditadura pós-1964
João Pedro Thimoteo
Este ensaio busca apresentar uma crítica à maneira como o regime ditatorial pós-1964 normalmente é apresentado pela perspectiva liberal-democrática. Argumento que essa figuração do mundo é incapaz de organizar uma crítica sistemática à ditadura, posto que é dependente de uma aceitação acrítica das categorias sociopolíticas dominantes do capitalismo contemporâneo. Estabeleço uma relação entre a crítica liberal-democrática e o regime de historicidade presentista, assim como a noção de novo tempo do mundo, indicando que, pelo rebaixado horizonte de expectativas que expressa, é incapaz de compreender a historicidade do último regime ditatorial brasileiro.
Você come o quê?
O negócio da produção de alimentos no capitalismo
Júlia Aparecida Soares de Paula e Vitória da Silva Chagas Babo
A fome, para além de sua dimensão individual e biológica, reflete as estruturas sociais, econômicas e históricas que moldam a produção, o consumo e as relações entre os seres humanos e a natureza. A necessidade de sustentar a vida por meio do acesso à comida contrapõe-se à mercantilização da terra e dos alimentos, promovida pela lógica capitalista, que intensifica as desigualdades e compromete o cultivo de uma alimentação saudável e sustentável. Esse fenômeno evidencia a busca pelo lucro em detrimento do bem-estar coletivo e do equilíbrio ecológico. Nesse contexto, imaginar outra realidade demanda uma crítica radical à forma de vida predominante na sociedade produtora de mercadorias.
O pensamento decolonial:
entre a totalidade e a particularidade
Allysson Lemos Gama da Silva
Este trabalho visa refletir sobre como autores fundamentais da Escola de Pensamento Decolonial trabalham a dinâmica entre totalidade e particularidade em suas críticas epistêmicas à ordem global eurocêntrica. Observo analiticamente autores como Alberto Acosta, Agustín Lao-Montes e Marcelo Rosa. Também são discutidos autores fundamentais que serviram de inspiração ao pensamento decolonial, como José Carlos Mariátegui, Franz Fanon e Fausto Reinaga.
Presos no estômago da baleia:
qual o valor do luto na sociedade das mercadorias?
Pablo Gabriel Jorge Alazraqui Fernandes
A civilização contemporânea se vê diante de um colapso ecológico, social e econômico, vivendo em um duradouro e extenso velório onde vela a si própria. Mesmo nesse cenário de imersão em desamparo e barbárie – e intrínseco logicamente a ele –, o espaço para o luto, para a elaboração da perda, é barrado do campo do sensível e situado nos moldes do capital – racionalizado, útil e mercantilizado. No tempo histórico da modernidade capitalista, é o trabalho que determina, quantifica e calcula o custo do sofrimento e que padroniza o tempo economicamente viável de duração do luto. É nesse sentido que este artigo questiona qual o valor (moral e econômico) do luto na sociedade da mercadoria. A autoritária locomotiva do Progresso nos empurra, nos impele, e melancolicamente, sem nos enlutar, seguimos no estômago da baleia.
Imagem distorcida, bordas imprecisas, espelho quebrado:
algumas hipóteses sobre a devastação melancólica
Alexandre Magno Teixeira de Carvalho
O texto discute a melancolia como resultado da dificuldade no processo de trabalho do luto, que se transforma historicamente. A partir do final dos anos 1980, a reestruturação produtiva do capital intensificou a precarização do trabalho e a alienação. O autor destaca que as diversas formas de melancolia não são uniformes, argumentando que a "depressão" contemporânea está intrinsecamente ligada ao contexto histórico do capital, com sua lógica de obsolescência e demanda por performance.
A psicanálise, a psiquiatria contemporânea e o problema do diagnóstico
Pedro Cattapan
Este artigo se debruça sobre a demanda e a prática cada vez mais frequentes, na contemporaneidade, do psicodiagnóstico, problematizando-o e esboçando uma distinção entre a lógica pertinente a esta prática quando exercida pelo campo da psiquiatria organicista e a terapia cognitivo-comportamental, por um lado, e quando exercida pelo campo psicanalítico, embora o mesmo não esteja a salvo das contaminações do primeiro sobre si. Intenta-se demonstrar que o psicodiagnóstico em psicanálise se alinha, de modo tenso, à experiência da escuta do sujeito, enquanto o outro uso do diagnóstico tem finalidade normalizadora e utilitarista.
Da Caverna de Platão ao Cavern Club
Leonardo Cesar do Carmo
Neste texto, esboçamos em linhas gerais o que pode ser chamado cinema de massa como um “médium-de-reflexão” (Reflexionsmedium), conceito-chave no livro de Walter Benjamin sobre o romantismo alemão. Esse conceito articulado ao de arte cinematográfica esboçado no ensaio da reprodução técnica da obra de arte aproxima, numa dialética de extremos, diretores como Serguei Eisenstein e Steven Spielberg. O conceito de arte cinematográfica, adotado pelo filósofo alemão, empurra a análise fílmica para novas fronteiras além do denominado filme de arte e filme comercial. A obra de arte tecnicamente reproduzida no âmbito da Academia tem se limitado ao circuito literário e presa a uma falsa ideia de um excessivo otimismo de Benjamin quanto à tecnologia e em particular às técnicas narrativas cinematográficas. Benjamin no campo do cinema dialoga tanto com Krakauer, Eisenstein, Godard, Lynch, Cronenberg, Spielberg, James Cameron ou Jacques Rancière. Esse diálogo é certamente insólito, mas não impossível no trânsito com o cinema conservador ou cinema comercial tratados nessa exposição como sinônimos Em tempos de catástrofe, a Arte e o Kitsch se acumulam no mesmo campo ou torre de ruínas.