Pedro Claudio Cunca Bocayúva*
Há muito tempo vivemos sob o avesso da hegemonia, num estado global de guerras que convergem entremeadas por ciclos modestos de ilhas e soluços de consumo via crédito/endividamento. Quem não consegue ver que a globalização gerou o crepúsculo do americanismo como revolução passiva? Quem não consegue ver que, desde o golpe no Chile, o neoliberalismo emergia na chave da contrarrevolução? A nossa aposta na via da contrarrevolução passiva, via welfare global, também se esgotou como tentativa de guerra de posição nos pós-guerra fria. O reformismo forte como via revolucionaria terá de reler a mundialização na chave crepuscular da barbárie trumpista, do workfare, do warfare da modernidade líquida.
Na batalha dos afetos (Eduardo Granja Coutinho), os fenômenos mórbidos (Gramsci) exigem uma releitura mais fina, uma reflexão da história em contrapelo (Walter Benjamin), a partir dos espectros de Marx, como Jacques Derrida já advertiu. O saque e o bastão sustentam a multiplicação dos cenários de devastação, cerco e aniquilamento, ao lado de fugas de expulsões de milhões de deslocados, migrantes e refugiados.
Os frutos da crueldade planetária de Gaza rebatem trazendo a mentalidade banalizadora da vida nua. Por toda a parte, vemos o encarceramento em massa e as políticas de limpeza étnica. Esta é a marca decisiva para o trumpismo na guerra civil interna nos EUA. Não existe inside e outside no atravessamento das fronteiras por força da sobredeterminacão da conjuntura através das guerras contra as populações. A fronteira é móvel para a máquina de guerra e, decerto, para detenção para os condenados da terra.
As máquinas mortíferas e milicianas se voltam para a capital do Império em crise. O endividamento, o aquecimento e a guerra fazem da exceção a regra. Não é sem consequência hibridizar a "guerra contra as drogas", a "guerra contra o terror", a disputa do ar, do mar, do ciberespaço, colocando os regimes de segurança e os estados policiais como a saída para governar e administrar o pânico nas muitas revoltas, golpes e guerras civis.
A banalização da crueldade com a falta de velamento engoliram a razão cínica, desmontaram o pragmatismo e o fetichismo da mercadoria é substituído pela espetacularização via web. Os modos de governar tiveram de ceder ao domínio da "coisa"(a velha reificação). A fantasmagoria afasta as ilusões perdidas no planeta que arde. Somos governados pelos mortos e pela morte (tanatos). O jogo de faz de conta não consegue barrar o negacionismo. O planeta arde e a espécie humana é dominada pela tragédia do "capitaloceno". Certamente a "rota da seda" não nos salvará. Não existe uma revolução passiva modernizadora que nos liberte pela via do sinocentrismo, substituindo a centralidade do americanismo-fordismo.
O horizonte de resposta para a necropolítica exige um olhar de mais clareza sobre um caminho cosmopolita possível desde uma nova centralidade das periferias, desde novos blocos políticos, desde uma visão da "saúde coletiva" que afaste o cálice tinto de sangue. "Stop Gaza" só não parecia óbvio para quem não entendeu a advertência de Benjamin e a velha questão de Adorno. Não temos retorno possível para uma nova guerra fria nem uma transição sem guerra para uma multipolaridade. O caos sistêmico não se bifurca e o abismo se abre. Certamente, o catastrofismo não desvenda a catástrofe nem abre para um caminho fácil. Como buscar uma via catártica por uma política que tema lidar com a lógica da guerra?
O genocídio e o ecocídio são evidentes, mas continuamos intoxicados pela fumaça que nos mata nesta "sindemia" que propicia os novos fascismos, fazendo das guerras e dos desastres ambientais as marcas do apogeu e da queda do americanismo, cujas consequências dizem do genocídio contra as populações. Ao lado do consumismo, a outra face do espetáculo é a que assistimos na devastação, no adoecimento, na fome, na fúria, na desmedida do desastre biossocial. A catástrofe não é mais uma noção sem sentido, a epidemia, a financeirização e as guerras geraram uma nova conjuntura da mundialização, a arquitetura da destruição e o cenário de ruínas resulta do brutalismo, da cueldade banalizada, da necropolítica.
A "obsolescência do homem" (Gunther Anders) não é uma advertência. A pulsão de crueldade regressa com a força bíblica do desejo como pulsão coletiva da morte, alimentando a cena apocalíptica, com base no ódio que nasce do desespero, do desamparo e do desencanto. No mundo das "bets", a aposta mais fácil é localizar o inimigo na vizinhança como o culpado pelos efeitos do poder abstrato da máquina de guerra e do capital fictício, com todo o manejo das mutações cibernantrópicas e de produção da vida nua. Por isso, somos cada vez mais matáveis e descartáveis diante do Outro como inimigo e concorrente, que aparece como limitador da minha liberdade (egóica) de empreender na direção do gozo fetichizado da era do Pix.
Para colocar uma ética do possível, da sobrevivência, como um horizonte da práxis, é necessário levar ao limite a interrogação sobre a conjuntura, sobre o jogo do mundo. A dialética crítica negativa é a única forma de pensarmos caminhos emancipatórios que levem em conta os muitos desafios das lutas, com toda a complexidade de definir um horizonte de unidade na diversidade em tempos sombrios.
*Pedro Claudio Cunca Bocayúva é professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.
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