Sobre o Alfabeto das Colisões, de Vladimir Safatle.
Pedro Claudio Cunca Bocayúva*
Por que sorrimos enquanto somos massacrados? Por que jogamos na roleta russa da servidão voluntária? Será que perdemos a capacidade de ir além do imaginário colonizado, posto que vivemos no meio das cinzas do simbólico? Por que somos lançados no trapézio da morte que se anuncia no planeta que arde? Reaprender a fazer perguntas como essas faz parte de uma ruptura necessária, o caminho para resgatar o lugar da dialética depois da tentativa de assassinato da filosofia pela desmedida da razão. Será que um novo arranjo das letras pode ajudar a lidar com a ditadura dos algoritmos?
Alfabeto das Colisões é um livro diferente pela sua forma quase aforística e nos abre um caminho para lidar com a dimensão da "burrice do demônio". Temos belas pistas para reabrir a forca da interrogação nesses pequenos ensaios instigantes, que viram um espécie de "Mínima Moralia" do início do século XXI, numa colagem de significantes e letras, sem ordem alfabética, que se relacionam com imagens, com a potência envolvente do "pensamento crítico". Um bom exemplo está na letra D de "Dançar", onde Safatle descreve como o poder absorve o Daft Punk num espetáculo marcial, no 14 de julho num encontro entre Macron e Trump. Vale ver e depois ler para sentir a força de captura dos agenciamentos e dos espetáculos do poder.
Safatle escreveu um livro que reflete a força intelectual de quem maneja, com uma escrita primorosa, a arte de ler a conjuntura ou o "tempo presente", numa variedade de recortes onde a literatura e o cinema entram em cena na chave da análise do desejo, na dimensão do excesso e da exceção com o recorte da pulsão e o jogo entre a dialética histórica e a genealogia.
No mundo dos campos, do encarceramento e das guerras, a sexualidade continua martelando a cabeça do discurso da ordem. O fetichismo se mistura nas muitas formas em que a fantasia nos habita em tempos de crise de representação. A democracia realmente existente é uma espécie de máscara segregadora derretida na desmedida Ocidental no meio de novas geografias da fragmentação, do medo, da crueldade e da guerra. Quem pensar em Nietzsche, em Freud, em Adorno, em Arendt, em Lacan ou em Foucault vai encontrar neste texto o desafio de uma escrita com a força de um pensamento que lida com a reflexão da memória, da potência da emergência do coletivo, da recusa de acompanhar um acomodamento pela falsa saída através da busca da normalização para enfrentar a fúria. O fascismo se alimenta da razão cínica e do fracasso dos acomodamentos. Será que o espectro da revolução não renasce como o voo da coruja na véspera do fim do mundo?
A guerra difusa se alimenta do narcisismo das pequenas diferenças que nasceu de um suposto lugar de fala do eu. Quebras e fendas nos trajetos revelam possibilidades para aberturas, onde a falência de certos modos literários e de certos traçados para a autoestima pela retificação do mercado de identidades são postos em questão. Pois é exatamente na falha, na falta e na quebra que parece ressurgir a dialética como a possibilidade de encontrar outras saídas. De todo modo, um livro vale pelo que desperta no leitor, isto é, tem valor de uso, numa economia politica do antivalor.
O Alfabeto das Colisões funciona como um conjunto de conversas ou temas de um encontro especial com as palavras que nos interrogam questionando o pragmatismo, buscando o impensável como forma de escapar da catástrofe que nos tornou obsoletos diante da potência mórbida das máquinas, dos objetos que nos mostram seu poder de destruição. Ao mostrar como nesta cena a capacidade do poder de incorporar e submeter o Punk que revela, se vemos com ironia, o que temos de pensar sobre o lugar da dança, dos corpos em movimento e dos ritmos das lutas onde devemos buscar a energia para romper com a estética marcial, aquela que vem definindo lugares e hierarquias, invertendo o sentido de rebelião que marcava a força juvenil de um certo tipo de música.
A relação entre o fracasso da modernização e o fracasso, a modernização como resultado da barbárie coloca em questão o repensar da emancipação. Na chave da negação e a dialética da ilustração e lida no contrapelo, este mal-estar que atravessa a luta contra a hubris do capitaloceno tem sido chave para reabrir as condições para pensar de outra forma, onde a paixão e a batalha dos afetos esbarra com o imaginário povoado pela retificação. No declínio e obsolescência do homem está a chave para repensarmos as chaves de algum tipo de recomeço. Ironicamente, estamos novamente diante da ambivalência da origem da palavra revolução, numa espécie de metafísica do retorno, que se torna tão concreta como questão atual que reabre o filão da dialética.
Da leitura de Safatle existe uma pergunta que se repete e se desdobra na chave de um certo devir crítico com um horizonte de universalização que nasce das lutas: como evitar que a revolução repita o processo que a transforma no seu inverso? Como evitar a repetição da violência do opressor uma vez que se avança um passo na direção da emancipação? Como sair da branquetude com a mesma posição afirmativa que marcou os "jacobinos" negros do Haiti?
No final do livro podemos encontrar uma pista de como relacionar o espaço, os afetos e as subjetividades. Ela vem com a beleza do caminhar entre objetos, do modo como o gato articula relações, abre espaço e define um certo modo de lidar com a duração. Depois de tratar dos paradoxos do engajamento e da função do intelectual, na relação com a formação universitária, podemos retomar o fio de um horizonte de superação que parte de uma brecha onde as diversas mortes de cada um indicam um modo de pensar a liberdade de reinventar a vida para todos. O universal nasce desta abertura onde o real da falta encontra as pistas como uma canção que acompanha as cinzas do gato.
Safatle transforma num elogio a um certo tipo de sabedoria felina o percurso do mal-estar da melancolia e da miséria moral e psíquica que acompanha o peso da perda das nossas potências utópicas ( por força do esgotamento do impulso da revolução como força orientada para o devir de um certo pensar do universal). Um sopro de poesia nos empurra para um sentir que mostra as linhas das ligações que nos permitem lidar com a morte e reafirmar a força da letra que sustenta o melhor do nosso agir.
*Pedro Claudio Cunca Bocayúva é professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.
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