top of page

O Telegram e a extrema direita


Rita Almeida*



Eu trabalho no campo da saúde mental desde 1994, na maior parte do tempo em instituições para pessoas com sofrimento mental grave e muito grave. Já trabalhei como monitora de oficina terapêutica, como psicóloga, como supervisora clínica, como coordenadora de serviço, como gestora de saúde mental; já trabalhei em hospital psiquiátrico, em CAPS, em ambulatório de psiquiatria, em serviço de urgência e emergência psiquiátrica, em centro de convivência, já fiz trabalho em rede com a atenção primária, com o sistema judiciário e penitenciário, com comunidades terapêuticas, com escolas, conselho tutelar e hospitais gerais, isso distribuído em pelo menos uns 8 municípios diferentes. Então, eu posso dizer que já escutei praticamente tudo nessa vida. Há alguns anos eu diria, com a maior certeza do mundo, que nada mais seria capaz de me surpreender, me assustar ou me enojar em se tratando de ser humano, pelo menos até que eu entrei nas redes bolsonazistas do Telegram.


Nos últimos 4 anos eu frequentei esses grupos de extrema direita, inicialmente por curiosidade, e depois para fins de pesquisa. Comecei no Whatsapp e depois migrei para o Telegram, quando esta rede virou a queridinha da extrema direita, e não por acaso. No Telegram eu realmente conheci o pior do ser humano. Foi nessa experiência que eu consegui utilizar com propriedade a palavra bestialidade.


Obviamente que o Telegram é apenas uma ferramenta de compartilhamento de mensagens, como muitas outras, mas o modo como ele opera parece favorecer ainda mais a propagação de discursos extremistas e nazifascistas. Acho que isso se deve a sua total falta de regulação (o que é comum nessas redes fechadas), mas também porque, ao contrário do Whatsapp, o número de pessoas possíveis em um grupo é ilimitado. A facilidade de formar bolhas com pouca abertura para a diversidade também é uma característica forte, presente também em outras redes do mesmo tipo, mas o Telegram tem uma outra peculiaridade: com apenas 1 clique você pode ingressar no grupo que originou a mensagem que você recebeu. Eu explico: caso você, individualmente ou participando de um grupo, receba uma mensagem que lhe chame a atenção, ao clicar nela você é encaminhado para o grupo de onde ela veio, ou seja, em 5 cliques você pode acionar 5 outros grupos com potencial ainda mais extremista que o inicial. Em 5 cliques eu chegava com facilidade em grupos abertamente nazistas ou em outros totalmente alucinados, com teorias da conspiração bizarras (muito mais bizarras que o que já vimos no bolsonarismo), muitos deles vinculados a grupos de outros países e em outras línguas.


Eu já escutei todo tipo de insanidade e descolamento da realidade na minha vida, mas nada, NADA se compara ao que eu vi nesses grupos de Telegram. E, pelo que entendi, a bestialidade alcança níveis tão inimagináveis porque ali os absurdos não são questionados, interpelados, tratados ou barrados, ao contrário, eles são reforçados, potencializados e disseminados numa rapidez e com uma capacidade de ramificação absurda.


Na política, na psicanálise, no direito, na literatura, na filosofia, na psicologia, a palavra é tornada ferramenta para tratar do real, para cuidar do horror, para contornar o absurdo, para nomear o nojo, para amparar o vazio. Por mais que eu tenha escutado e visto coisas loucas, terríveis, bestiais e abjetas ao longo da minha vida profissional, eu via também a tentativa das pessoas em tratá-las, em fazer delas algo possível, algo menos horrível, algo mais palatável e belo, ainda que por pudor ou medo das sanções. Nas redes de extrema direita do Telegram eu vi, ao contrário, a palavra sendo sistematicamente usada para barbarizar e destruir qualquer possibilidade de tratamento e cuidado do horror. Entendi ali que o fascismo é o uso da palavra para impor e massificar a bestialidade de modo a transformar a coisa mais abjeta em algo possível, apenas por ser autorizada por muitos.


Entendo que o Telegram não tenha inventado o fascismo, mas a maneira como ele se comporta na presença da extrema direita - e não posso deixar de pensar que há pelo menos leniência em tal comportamento - corrobora e sustenta um discurso extremamente deletério para as sociedades e as democracias. Obviamente que a suspensão definitiva do Telegram não é a solução - até porque sabemos que o capitalismo nunca deixa uma demanda sem cobertura, não faltará quem cubra o buraco deixado -, entretanto, a pressão dos governos democráticos e da sociedade organizada é fundamental na exigência por regulamentação dessas redes. A internet precisa urgentemente ser pavimentada pelas democracias.


 

*Rita Almeida é psicóloga, escritora, psicanalista em formação, mestre e doutra em Educação.

Comments


Commenting has been turned off.
ESCRITOS
bottom of page