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Gregório Duvivier e o poder encantatório das palavras


Leopoldo Guilherme Pio*



Escrevo impactado — e instigado — pela peça O Céu da Língua, de Gregório Duvivier. Se, em sua obra anterior (Sísifo: Ensaio sobre a Repetição em Sessenta Saltos), o autor já utilizava a palavra como instrumento de reflexão sobre as travessias da vida e os ciclos das experiencias humanas, em O Céu da Língua ele amplia essa investigação, expondo de forma ainda mais incisiva como o poder da linguagem molda — e por vezes aprisiona — a própria existência. Duvivier sugere que a vida humana só se sustenta porque é nomeada. Tudo o que fazemos — mover-nos, cheirar, beijar, amar — depende da mediação das palavras.


Essa constatação, porém, não é apenas uma celebração da linguagem, mas também uma reflexão: se as palavras nos permitem existir, elas igualmente delimitam o alcance daquilo que podemos sentir e compreender. Seja ao reconhecer um objeto banal, em uma conversa de bar, na leitura de uma bula ou de um livro, ou nas encenações digitais das redes sociais, somos constantemente atravessados e definidos pelo discurso — vinculados a ele e, ao mesmo tempo, sustentados por ele.


Nos tempos em que vivemos, marcados pela aceleração das experiências, pela mercantilização da atenção — talvez a principal mercadoria do capitalismo contemporâneo — e pela desvalorização sistemática e estratégica da leitura, uma peça como O Céu da Língua nos ajuda a reencantar as palavras. Gregório, com talento singular, joga com seus múltiplos sentidos, com vocábulos que expressam afetos ou situações particulares de certas culturas, e também com aquelas palavras que parecem habitar um “asilo” da língua: serelepe, faceiro, borogodó, desaforo...


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A primeira lição talvez seja esta: sermos sensíveis à potência criativa da linguagem, para além de seu uso instrumental ou meramente objetivo. A linguagem nos atravessa e nos transcende; as palavras são mais do que ferramentas de expressão. Se João do Rio tem razão ao falar da “alma encantadora das ruas”, também as palavras possuem uma alma, uma história, uma personalidade.


Walter Benjamin lembrava que as coisas também têm linguagem — uma linguagem silenciosa, que comunica sua essência, seu conteúdo espiritual. Assim, o modo como nomeamos e falamos transforma nossa relação com o mundo. Todas as coisas “falam”, mas apenas o ser humano é capaz de escutar e traduzir essa linguagem muda do real. Por outro lado, Lembra Gregório, “Nada escolheu seu nome.  A gente aprendeu o nome das coisas há tanto tempo que a gente esquece o esforço hercúleo que foi necessário para aprendê-las”. Gregório inclusive se utiliza da sua experiência de pai e de sua filha que fala “papato”, afirmando que queria fazer um cordão sanitário para a palavra. “Mas daí eu lembro que não é fácil a vida da mulher de 40 anos que fala cadê meu papato, então eu digo pra minha filha com o coração apertado bota o sapato. É sapato mesmo. Sabendo que eu tô matando uma coisa preciosa dentro dela”. Os poetas e as crianças mantêm esse poder de profanar as coisas, de desafiar o sentido burocrático das palavras adultas.

 

Assim, fica a pergunta suspensa no ar – por que não nos utilizamos as palavras de formas criativas, por que me restrinjo aqui a escrever como acadêmico e não um poeta, mesmo que de maneira medíocre? Afinal, por que nossa voz suspira, entre as metáforas e as mentiras de uma tese ou de um verso? E mesmo a palavra desnecessária não parece contrária à sintaxe do universo? E mesmo assim precisa ser dita, talvez porque reflita até mesmo o seu inverso... Perdão. Me desviei para um esboço de poesia em um texto que se pretende ensaio, o que, dizem por aí, não é correto. O fato é que na medida em que crescemos perdemos progressivamente essa capacidade poética de dar novos termos às coisas e sentimentos. Talvez por isso os sentimentos têm se tronado cada vez mais coisas para serem compradas ou cobradas. Nos tornamos mais chatos e menos poéticos, mais instrumentais que lúdicos.

Enfim, melhor parar por aqui. Melhor não concluir nada, para que as palavras fiquem suspensas em nossas mentes... ou no céu da língua.


*Leopoldo Guilherme Pio é professor adjunto da UNIRIO e membro do conselho editorial da Círculo de Giz.

 
 
 

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