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Stop now!

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva*


A advertência de Lula toca no ponto limite em que a questão humanitária transcende ao monopólio da leitura histórica. Todo cuidado é pouco com as palavras, mas, principalmente, com os atos de força, com a desmedida da crueldade que atravessa o sistema mundo. Combater o antissemitismo e combater o terrorismo social, estatal ou religioso, exige que se possa estabelecer um limite para a aplicação de noções que paralisem a continuidade do Estado de guerra e da cultura da sua espetacularização.


O senso comum mundial pensa em duas chaves que se entrecruzam: o Hamas deve ser punido e o governo de Israel deve ser contido. Um crime não justifica uma vingança que perde a proporção. Por outro lado, a especificidade genocida do nazismo deve ser sustentada historicamente na chave de um crime contra a humanidade sobre o corpo judaico, que inclui a eliminação da intelectualidade na cultura, na eliminação da oposição socialista e comunista, e de segmentos e grupos estigmatizados pelo preconceito sexual e étnico, pelas ações sustentadas num tipo de ideologia e práticas "eugênicas" sobre todo tipo de diferença "biologizada".


Mas o que está em questão hoje é a exigência de um basta que impeça um novo processo genocida de limpeza étnica, como vem se repetindo mundo afora e parece corresponder a intenção do bloco de forças que se formou como governo em Israel, que não aceita a solução de dois Estados, assim como o Hamas e a Jihad. O governo Netanyahu é composto por um bloco de forças voltado para o projeto de um estado étnico puro, para gerar um "Grande Israel", que vai expulsando da terra e negando os direitos do povo Palestino. Desde 1994, podemos assistir a uma continuidade de ações mórbidas nesta direção. O sufocamento da politização na esteira do "paz agora" se perdeu pela destruição da política laica.


Um corte histórico elementar tem relação com as violações dos acordos de Oslo e tem relação inversa e simétrica com os golpes de força fundamentalistas em Gaza e no Israel. A morte de Yitzhak Rabin marcou o avanço do extremismo antidemocrático e antipalestino, que sustenta golpes de força sucessivos que atingem a democracia em Israel e impedem a paz. A aposta da OLP também foi golpeada nos últimos vinte anos pelas saídas das formações de tipo religioso e em rede que se vincula ao desastre das ações e intervenções que pretendem levar a guerra ao Irã. O caráter laico e moderno do movimento social e político como o da intifada foi se esvaziando, com o quadro das intervenções desastrosas no Afeganistão, no Iraque, na Síria e com a ação colonial e de militarização do Estado policial que veio crescendo do lado israelense. Em Jerusalém e na Cisjordânia, com as mortes seletivas e o esgotamento das ações de resistência, temos um aumento de saídas pelo terror. As fronteiras da crueldade sempre apagam clamores de justiça e dignidade.


As ideologias fundamentalistas se retroalimentaram desde 1994-1995. O Hamas aposta no fim de Israel e Netanyahu aposta na limpeza étnica. Eles acabam gerando um cenário de guerra sem fim, com uma lógica que reafirma a militarização e a exceção, reabrindo o antissemitismo. Descolar o sionismo da ação neocolonial deixou de ser possível com o declínio do Estado laico de direito em Israel? Com o Hamas se tornou impossível buscar soluções com autonomia e pressão de massas? As relações internacionais geradas na nova conjuntura de conflitos deixou de ser favorável. O fim da Guerra Fria manteve viva a OTAN, rearmou a Rússia. Como realizar uma saída de cessar fogo no ambiente que combina as grandes guerras americanas, as redes fundamentalistas e a cegueira ante a catástrofe anunciada com os desastres sucessivos e o declínio das instituições multilaterais?


O "Ocidente", que se diz democrático, não abandona sua face bélica e as forças difusas, o "Sul" e o "Oriente" múltiplo exigem redefinir fronteiras. O egoísmo do capital e a fúria que alimenta lógicas de guerra e o discurso do "choque de civilizações" fazem da guerra difusa e dos regimes de exceção um fator da mundialização pós-Guerra Fria; os jogos de guerra na relação com a Ásia Pacífico acendem as luzes e assustam a China. Mas a culpa é sempre do outro. Ao final, forças menores vão se armando, o monopólio nuclear está quebrado e a guerra novamente está se abrindo nas fronteiras eurasianas do Norte, sem falar nos riscos de um retorno de Trump.


Reconhecer os direitos dos povos e da vida e lidar com as guerras em curso se tornou uma das prioridades decisivas que exigem, como na questão climática, uma resposta proporcional ao peso e poder de cada ator. Mas os problemas locais quando se tornam transacionais demandam que os grandes atores e a comunidade internacional cooperem com decisões multilaterais que promovam justiça e salvem vidas. Decisões que se tornam decisivas na saúde, na dignidade e nos conflitos ambientais, na concorrência e nas guerras. O risco é o fracasso de decisões muito ambiciosas e de novos "diktats". Uma espécie de "New Deal" mundial com corte ambientalista ainda é um sonho distante. Um cosmopolitismo com objetivos bem precisos parece ser um caminho realista.


A questão de exigir um basta de mortes nos afastaria do fetiche do espetáculo do gozo punitivo do falso realismo bélico. Realista é a exigência da necessidade de paz. Mas será que quem tem mais força não tem mais responsabilidade, o que é diferente da culpa? O jogo entre culpa e responsabilidade pode ir se deslocando; jogar com a guerra coloca sempre em questão o que fazer com a vitória, ou como obter a vitória? O fato é que as vítimas e os riscos se ampliam quanto mais o senso comum deixa de buscar o bom senso do cessar fogo. A politica de guerra é um atoleiro tenebroso, mais ainda se nos movemos sustentados por golpes e massacres. Já sabemos onde isso vai dar.


Stop now!


 

*Pedro Claudio Cunca Bocayuva é professor do Mestrado do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ. Coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade e Território.

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