Pedro Claudio Cunca Bocayuva*
Escrevo algumas considerações intempestivas do livro que nunca escreverei.
Sabemos que um certo messianismo político sempre situou o lugar da revolução desde a ideia de um extremo necessário. Assistimos hoje ao início do contrário piorado do fascismo e do stalinismo - quando o terror era visto no ciclo da revolução como um momento necessário, uma máquina de dominação totalitária de tipo policial. Nos regimes de excessão, o terror se converteu historicamente na dimensão presente do medo e da insegurança permanente, sempre dosada para a gestão da vida coletiva. O poder matava a política e buscava, no século XX, um padrão de administração através do governo do medo. O poder soberano operava usando a crueldade colonial expandida como um limite de racionalidade maquínica, o que foi classificado como sendo a "banalização do mal".
A crueldade na modernidade desvela o modo de governar como atributo da racionalização de uma vigilância de todos sobre todos, numa hierarquia que leva ao extremo a noção de bipoder, que vai e volta no limite da necropolitica e que tenta se antecipar a uma guerra sem fronteiras. As ações genocidas e o horror extremo operam produzindo apartheids com fronteiras, passaportes e vistos com mapas oficiais e espaços rígidos, com a formação de territórios do tipo "zonas", com a delimitação de separações de distinção social, espacial, cultural e étnica que tem nas técnicas de poder policial patriarcal, capitalista e racista, seu ápice, cujo limiar se amplia com a massificação da psicologia autoritária o terror de Estado.
A noção crueldade é um recurso crítico, filosófico, estético e político que apresenta uma leitura da dialética negativa, ou uma inversão necessária para revelar a irracionalidade como parte da violência própria, do homem e da sua História, cuja negação via normalização pode ser aniquiladora e brutal, levando à cegueira na leitura sobre a vida na modernidade tardia da sociedade de massas. A revelação do lado obscuro da alma ou do preço da barbárie sofria com as ideologias dominantes as tentativas de encobrir a violência em todas as formas, enquanto o preço que pagamos pela Civilização e pela caminho da modernidade.
Nas leituras de Sade, de Nietzsche e de Artaud, a crueldade é como o recurso necessário para despertar uma consciência do que somos, para entendermos a violência própria da espécie que tem um efeito ilusório devastador para implantar a tirania, ou para justificar as muitas conquistas brutais, cruzadas e banhos de sangue sobre o manto teológico e político do cristianismo ou da razão iluminista com seu apogeu num tipo de eugenismo. Mas todo este processo ainda teve em Marx e Freud uma crítica otimista-evolucionista e uma crítica pessimista, numa aposta na possibilidade que o entendimento do continente do insconsciente gerasse uma espécie de barreira de contenção.
De todo modo, a violência foi pensada como um conjunto de forças pulsionais coletivas e individuais que explicavam porque o interesse era sempre afetado pelo desejo, a chave do excesso, da mais-valia e do id acompanharam a leitura ético-estética e filosófica da dimensão imanente do poder das paixões tristes na relação com a vontade de poder. A morte e a destruição nos habitam no elo entre o sagrado e o profano na direção da "parte maldita" em que a acumulação se aproxima da nova arquitetura da destruição, do encarceramento e da devastação. A crueldade como categoria, que no passado permitia jogar no palco da vida a cena que nos revelava, desmascarando interesses revelando nossas entranhas, já não consegue ir além de forma provocativa ante os fatos que naturalizam a barbárie na guerra difusa.
O fetichismo, a reificaçâo e alienação nos conectavam com a força de operações que tentavam apaziguar, onde as paixões, num teatro de entretenimento ou numa cinematografia do atordoamento, tecia os fios ilusórios com as emoções fortes que não lida mais com o poder de reprodução dos véus da nossa ignorância. A razão cínica se hipertrofiou nos negacionismos multiplicados no universo do fake.
Na crise iniciada com as guerras totais e o consumo desenfreado no século XXI, desde o advento da era do espetáculo, a sociedade de controle de massas se liquefaz. O capitalismo global de vigilância e a necropolitica deslocam-se pelos aplicativos e máquinas de comunicação e guerra, o que difunde por toda parte o poder sobre o espaço como estrutura em redes, onde aparelhos e máquinas de poder e controle se somam aos circuitos da circulação, produzindo cenários que banalizam a crueldade através de mobilização de hordas, sicários, milícias e máfias. O teatro como linguagem perde parte da força explicativa pelo esvaziamento da noção de crueldade ante o brutalismo dos eventos. Parece que Bataille abre as portas para irmos além do esforço de Artaud. O poder do "teatro da crueldade" se perde ante a banalização da violência que goza ante a dor do outro, como um fenômeno sem véus como o que assistimos recentemente no Brasil e por toda a parte em que a crueldade se banalizou.
O "pequeno tratado sobre a crueldade" trataria deste ultrapassamento, que pelo som e a fúria varre o sonho pedagógico de Brecht, vai além das ironias do absurdo. O real clama pela estética contra as opressões, exige ações capazes de construir a oficina da cartografia que desperta a necessidade de uma clinica que lide com o trauma da enorme dor que nos cerca de maneira catastrófica. Será que o vetor moral da mensagem de Artaud perde a força libertadora de um tipo de teatro capaz de criar os elos comunicativos com o corpo despedaçado da multidão?
A tomada de consciência, que era um ponto extremo da leitura estético-política da modernidade, dizia muito do que precisávamos, mas parece ter se liquefeito quando o simbólico sucumbe ante o imaginário. Lembrando Artaud: "tudo bom que age é uma crueldade. É a partir dessa ideia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar". Manejar cenicamente a violência na chave da visibilidade do gozo da crueldade era uma chave fundamental para um teatro capaz de falar com as massas. Mas o que fazer quando parte da multidão é habitada pela fúria e a pulsão da crueldade na medida mesma em que o véu dos consensos se rompe na passagem ao ato, na força das máquinas de guerra e na explosão das imagens que enaltecem a barbárie e a necropolitica?
A confusão atual do caos e colapso sistêmico da ordem global coloca a questão no sentido posto por Adorno: como nos educarmos como espécie quando já não nos vislumbramos na chave do progresso histórico? Isto não é novo, mas exige reler o momento destrutivo em contrapelo, na chave de um Walter Benjamin, usando um diagrama de leitura rizomático dos escombros das ideais e das utopias que se esgotaram. Vivemos a passagem da morte do homem, um resultado do desdobramento da radicalização da morte de Deus, uma vez que a crueldade deixa de ser uma noção ou dimensão limite do mal e passa a ser o nome da coisa.
*Pedro Claudio Cunca Bocayuva é professor do Mestrado do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ. Coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade e Território.
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