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Sobre a dialética do despertar


Diogo C. Nunes*



Nossa existência diurna é um país cheio de lugares ocultos em que desaguam os sonhos.

Walter Benjamin.



“O sonho espera secretamente pelo despertar”, afirmou Benjamin nas Passagens. A indistinção, em Benjamin, entre sonhos diurnos e noturnos não é descuido, mas parte de uma estratégia discursiva que, ao desencadear e sobrepor metáforas e alegorias, faz romperem, embaralharem e/ou, por vezes, diluírem oposições antitéticas. “A mesma estrutura”, na promoção do sonhado à vigília, têm os sonhos noturnos e diurnos, disse.

 

A passagem do sonho à realidade desperta não se dá sem perdas irreparáveis do material onírico para a consciência, o qual, todavia, não é recebido senão com enxertos narrativos que são tão ou mais importantes que a própria imagem sonhada. No caso do sonho diurno, tal perda e tal ganho não são menos importantes, ainda que se trate de expedientes distintos. A mediação narrativa, sem a qual não há acesso ao sonhado, é essencial para que a imagem onírica se invista de sentido – e possa apontar a um sentido. Para o sonhador diurno, essa mediação é o que inscreve a projeção onírica no tempo.

 

O trabalho de elaboração narrativa, qual tecedura – “o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?” –, que costura (e embaralha) os fragmentos do sonhado com os retalhos do dia, configura a instância do despertar. Com ele, o sonhador temporaliza sua experiência no mundo: reminiscência e esquecimento, projeção e enxertos associativos se oferecem como fios a compor uma trama que, como nos alerta Benjamin, nunca esconde por completo seus espaços vazios constitutivos. O “acordar” [Das Wecken] pode ser lido, assim, não como um “tomar consciência”, mas o gesto através do qual o devir – a princípio, à deriva e oculto –, emergindo à dimensão que lhe é própria, à das possibilidades reais, institui a temporalidade como potência, abrindo o amanhã.

 

A instância do despertar, que Benjamin chamou também de dialética do despertar, revela que a pretensão de interpretar o sonho terá de se haver com a interpretação que o sonho oferece da realidade. O sujeito do sonho é, pois, sujeito ao sonho. Em As Ruínas Circulares, Borges narra o esforço do personagem para “sonhar um homem”, inclusive seus sonhos. Por fim, “com alívio, com humilhação, com terror, [o personagem sonhador] compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.



Jean Michel Folon, 1974.


O sonho desponta outras camadas de sonhos no sonhador; dialeticamente, é o sonho que desperta nele – e desperta não propriamente um conteúdo, mas suas implicações temporais e alteritárias. Através do espelho, Alice é reflexo de si mesma, mas seus gestos, falas, pensamentos não são os mesmos. Ao deparar-se com o Rei, indaga: e se... não sou eu mesma um sonho dele?. Ao retornar do País das Maravilhas, Alice é e não é si mesma. Em poema que prefacia Através do Espelho, obra que Lewis Carroll associa a um jogo de xadrez e chama de “conto-sonho”, lê-se: “Eco que na memória não esmorece / Embora o ciúme do tempo diga: ‘esquece’”.

 

Um “eco” insiste na memória, contra a – ou à revelia da – passagem do tempo. Eco, fantasma de Narciso. O espelho, o sonho e o tempo estabelecem entre si uma cumplicidade, como observou Borges, que se revela na “ideia do duplo, a ideia do outro eu”. É igualmente um trabalho de síntese o que a narrativa promove. As pontas soltas, contudo, como Eco rejeitada, retornam de forma cifrada. O sonhador é cindido no e pelo sonho. Como no poema de Victor Hugo, em que afirma ser o poeta “o homem das utopias”, o sonhador tem les pieds ici, les yeux ailleurs. Em O Sonho, de Borges:

 

Serei todos ou serei ninguém. Serei o outro

que sem sabê-lo, sou, o que fitou

esse outro sonho, minha vigília. E a julga,

resignado e sorridente.

 

No sonho, a pretensão narcísica de possuir a si mesmo encontra uma barreira e uma oportunidade vacilante: a de um “eco”, que duplica o mesmo para fora, de forma diferente, prolongando ao futuro, mas, ao mesmo tempo, evanescendo. O sonhador desperta e é despertado, sonha e é sonhado; por isso a instância do despertar não tem a forma de uma relação dialética, mas é propriamente uma dialética. É este o momento em que o sonhador “esfrega os olhos”, como diz Rouanet, “e o historiador ‘assume a tarefa da interpretação dos sonhos’’’.


O instante do esfregar os olhos, sendo o da passagem dialética, é o limite, a faca só lâmina. Na Lógica de Hegel, o limite é a abertura à contradição, a mediação dialética entre o dentro e o fora, o antes e o depois, que revela a alteridade constitutiva de cada qual. No poema de João Cabral de Melo Neto, a faca só lâmina, enterrada como um relógio no interior do corpo do homem, “[...] é uma ausência / [...] que esse homem leva”.

 

Isso que não está

nele é como um relógio

pulsando em sua gaiola,

sem fadiga, sem ócios.

 

Isso que não está

nele está como a ciosa

presença de uma faca,

de qualquer faca nova.

 

Que o momento da passagem dialética seja uma ausência que o homem leva nos diz que nem o sonho nem o “eco” têm substâncias próprias, mas manifestam, antes de mais nada, a presença do outro que é uma falta: a ausência que impulsiona para adiante, o desejo. A indagação de Alice, “E se...?”, é a senha, no sonho diurno, da promoção ao despertar. O “E se...?”, combatido e/ou desprezado pela História, mas fundamental à existência, representa aquele instante de hesitação, reticência interrogativa que abre a possibilidades, que reinstaura na história (seja de vida, seja social) seu animus: sua imprecisão, e, por isso, seu movimento.


 

*Diogo Cesar Nunes é historiador, doutor em Psicologia e editor da Círculo de Giz.

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