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O inferno como marcador e a filosofia da práxis


Pedro Claudio Cunca Bocayuva*



No tempo de Maquiavel, tínhamos a opção de refletir a partir de "inparare la via dello inferno per fuggirla"[1]. Passamos pelo "inferno são os outros" até que o inferno ganhou a forma do excesso do deserto do real. A máxima do ser para a morte se confirmou na exceção e no excesso da necropolítica do capital global, na desmedida da pulsão de morte, na chave da banalização da crueldade.


Reinventar a politica para além do Estado virou uma pseudo fórmula da barbárie, uma ideologização das novas cruzadas na chave das diretrizes eugênicas da guerra preventiva, com a rebelião da capatazia furiosa estimulada pelo cinismo raivoso dos vencedores, capturados pelo seu imaginário narcisista povoado de pesadelos sobre rebeliões de mortos vivos. O governo pelo medo virou a chave da nova guerra de todos contra todos, no meio da catástrofe do capitaloceno. Depois da morte do moderno príncipe de Gramsci, depois da pasteurização mercantil, da sociedade do espetáculo e da obsolescência no homem, o resta de resíduo da condição humana?

A reinvenção da politica exige repensar o poder. Na chave da biopolítica, a emancipação se encontra ante o poder da soberania hipertrofiada; na chave da guerra e das finanças, o ciclo de transição para um novo império não pode se consumar sem um grande armistício. O cosmopolitismo reaparece como necessidade realista no meio das ruínas, da epidemia e do desamparo. A questão é se uma catarse, uma nova rebelião em algum ponto do planeta poderá reabrir no turbilhão o imaginário, a vontade e as instituições que assumam, no eixo do direito à saúde mundial. Como localizar uma nova arte política para lidar com o poder da violência extrema desde uma base molecular capaz de gerar "espaços de esperança"? Como fortalecer o agir estratégico dos vencidos sem novos blocos históricos, sem um horizonte de mediações que barrem os traumas continuados?


Parece evidente que resta pouco tempo, especialmente no Brasil, para a geração de subjetividades corporificadas em espaços como força imanente atuante, capazes de traduzir os anseios que nascem do corpo e da voz emancipatória das gentes subalternas no meio da catástrofe que já chegou. O capitalismo global com seus saques e guerras já nos lançou no inferno. A máxima de Maquiavel quando aplicada aos tempos atuais já está muito longe de poder esperar por qualquer tipo de condottiere. Reler Gramsci através de Benjamin parece ser o único caminho para um agir com sentido atual - quando estamos diante do retorno da guerra na chave do apocalipse, a filosofia da práxis se escreve no contrapelo em relação ao desastre da condição pós-moderna.



 

* Pedro Claudio Cunca Bocayuva é professor do Mestrado do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ. Coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade e Território.


[1] "Acredito que este seria o verdadeiro caminho para o Paraíso: aprender o caminho do Inferno para escapar dele" ["Lo credo che questo sarebbe il vero modo ad andare in Paradiso: inparare la via dello Inferno per fuggirla"].

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