Diogo Cesar Nunes*
Somente são verdadeiros os pensamentos que não compreendem a si mesmos.
T. W. Adorno.
Neste curto e desconcertante aforismo, publicado em Minima Moralia, nos damos com um concentrado de boa parte do pensamento de Adorno. (Uma parte que fala pelo seu todo, certamente, se tivermos em mente que a parte não é mero reflexo do todo e que este não é, por sua vez, mero somatório das partes).
Que à palavra “verdade” se remeta aquilo que não se percebe de imediato, nisso concorda o racionalismo. Mas, aqui, é o pensamento que é, ou não, verdadeiro em relação a si mesmo. Seu contrário não seria exatamente o falso, mas o ideológico.
Porque a relação entre pensamento e realidade nunca é imediata (ou seja, é sempre mediada) e porque numa sociedade totalmente administrada, como a nossa, uma compreensão que pareça imediata seja aquela que faz concordar e reproduzir dada estrutura (discursiva, simbólica) dominante (ou, se quisermos, hegemônica), a verdade tem o estatuto de uma u-topia: habitante de um lugar-outro, a ser encontrado ou inventado, ela corresponde à não-verdade desta efetividade e se expressa na insuficiência da expressividade.
Em relação ao seu conteúdo o pensamento não pode estar em paz. Não é porque o pensamento não seja livre (de determinações diversas) que a liberdade não se dê no próprio pensar, disse Hegel. Mas a efetivação desta liberdade (sua verdade) não pode ter outro caminho que o de uma colisão com os regimes de expectativas em voga. Quer dizer que, espontaneamente, estamos dispostos a compreender, sem conflitos, unicamente aquilo que pacifique a realidade, que lhe dê algum tipo de acabamento, que lhe oculte seus poros e suas contradições. Daí que, para Adorno, o sofrimento seja a expressão da verdade da vida danificada. Vida que, “apêndice do processo de produção material”, se encontra constrangida à impossibilidade de pensar um mundo em que “os homens não precisassem ser maus”.
O estranho, o dessemelhante, o não-idêntico sinalizam ao que, na experiência do pensamento, falam sobre seu teor de verdade. O movimento do pensamento (o verdadeiro, neste caso) não é o de ultrapassar a realidade, como propôs Heidegger, mas um passar-mal, um mal-estar instaurado nesta experiência – o que, para usar a distinção feita por Benjamin, a impediria de ser uma mera “vivência”.
Se Adorno nos disse, em outro lugar, que a filosofia deveria se desfazer da ilusão de que é possível, pelo pensamento, compreender a totalidade da realidade, é, também, na medida em que seja justamente o que escapa o que mais fala sobre a efetividade (em sua contradição e em seu teor utópico: o que vige em latência). Mas fala, ora, desafiando a língua: o filosofar deve ser “o esforço para dizer aquilo sobre o que não se pode falar”.
Daí que o filósofo e o poeta se encontram – sem, contudo, se identificarem. Pois, como escreveu Manoel de Barros,
Ao poeta faz bem
Desexplicar
– Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
*Diogo Cesar Nunes é historiador, doutor em Psicologia e editor da Círculo de Giz.
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