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Respeitar a memória de Silvio Santos?


Diogo Cesar Nunes*



A repercussão da morte de Silvio Santos tem sido bastante diversa e controversa, como talvez já fosse de se esperar. Vários grupos de esquerda vêm ressaltando o vínculo de SS com os governos militares e, mais recentemente, com Bolsonaro, lembrando que se tratava de um banqueiro, antes de mais nada, que se aparelhou o quanto pôde no Estado para manter e ampliar seus privilégios de classe.


Outras pessoas e grupos, contudo, têm se posicionado de forma diferente. Breno Altman, por exemplo, acusou de “elitista” a avaliação (sic.) da “trajetória de Sílvio Santos apenas por suas posições conservadoras”. Isso seria, para Altman, uma “ofensa contra a memória afetiva de nossa gente”.


A posição assumida por Altman, e compartilhada entre outras tantas pessoas identificadas como de esquerda, diz algo mais ou menos como: precisamos respeitar o que a imagem de SS representa no imaginário social popular se queremos (nós, da esquerda) de fato estar junto ao povo.


Esse óbice à crítica mais efetiva a SS abre algumas questões importantes. Uma delas, a pergunta: é possível uma crítica respeitosa – tanto ao objeto quanto a quem se vincula afetivamente a ele? O que significa, afinal, respeitar?


A etimologia nos diz que respeitar é lançar ao objeto um segundo olhar. Re-especere, olhar de novo, olhar mais atento. De diversos modos, uma crítica é sempre, e necessariamente, um ato de respeito, e o é todo pensamento que se pretende epistemologicamente válido. Porque, se na nossa vida comum e cotidiana, em tantas circunstâncias “a primeira impressão é a que fica”, em uma análise (chame-se ela de crítica ou não) a primeira impressão, ainda que importante de diversas formas, nunca é suficiente.


Poderia dizer que a fala de Altman faz coro ao "me me me". Uma cultura do "me me me" diria respeito à incapacidade, amplamente compartilhada, de lidar com a crítica, de confundi-la com a ofensa. Desde posições narcísicas, regressivas, o "me mezento" não suporta a diferença. Mas tomarei caminho diferente, em direção a um elogio da ofensa.


Ofender a memória social é, muitas vezes, o dever da crítica. Porque nenhuma memória é espontânea e porque sempre marca uma posição política, ainda que – ou sobretudo porque – os sujeitos não o saibam. O recuo diante o medo da ofensa é a ruína do pensamento. Fender: criar fendas, produzir rachaduras. É esta, pois, a definição de crítica. Ela é, mais que ofensiva, profanadora: a ela nada pode ser sagrado, ou seja, intocável.


Uma das principais tarefas (talvez a tarefa fundamental) do intelectual em meio à barbárie é a de produzir, de algum modo, a demanda por um segundo olhar. Instituir um litígio, uma ofensa, lá onde há algo de pacificado. Chamar a crítica de elitista é um recurso bobo e ingênuo, mas perigosamente eficaz, haja vista o tanto que é utilizado pelo aparelho comunicacional da extrema direita nacional e internacional.


Mas Breno Altman não é, certamente, ingênuo. O que devemos é perguntar: o que se pretende com essa defesa de uma sacralização da memória de SS? O que pretende Lula ao pedir que não se “remoa o passado” quando dos 60 anos do golpe de 64? Ao que parece, estamos em meio à construção de uma memória por parte de uma esquerda nacional que, por exemplo, se esqueceu que Delfim Neto era habitué do Palácio do Planalto lá pelos idos de 2006.


Quanto a SS, são muitas as camadas que compõem a história e a memória. O foco na sua trajetória como show man (o maior apresentador da história da tv, diz-se) via de regra oblitera tantas outras questões a discutir, desde o imaginário meritocrático do “camelô que virou banqueiro” às relações entre interesses do capital e Estado (ditatorial e de direito). Mas o próprio recorte da figura carismática da televisão tem muito a nos dizer sobre como o humor e a caricatura no entretenimento produzido pela indústria cultural sempre estiveram a serviço da extrema direita.


Como comunicador, SS soube, de modo exemplar, explorar nossas desgraças como show, como divertimento e, claro, como lucro. Dizer isso não apaga minha memória afetiva: a infância com meus avós diante da tv, com minha mãe se engasgando de rir com o Ivo Holanda, a apreensão pelo sorteio da Tele-Sena; na escola, cantávamos, sempre para fazer joça, as músicas dos programas de auditório, e nos aniversários o samba enredo da Tradição em homenagem a SS: “Olha que glória, que beleza de destino...”. Talvez o que falte àquela acusação de “elitista” à crítica seja compreender que na “memória afetiva da nossa gente” cabem muitas contradições e fendas. Do alto da sua “torre de cristal”, quer salvar “a nossa gente” do encontro com a crítica, como se não suportasse uma ofensa, quando a maior de todas é a realidade que obriga a tantos terem de “topar tudo” pela sobrevivência.


 

*Diogo Cesar Nunes é historiador, doutor em Psicologia Social e editor da Círculo de Giz.

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