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Tempo é dinheiro


Diogo Cesar Nunes*



O tempo é um pseudônimo da vida.

Antonio Gramsci.



A afirmativa de Marx de que o trabalho alienado corresponde à expropriação do tempo na medida em que convertido em mercadoria encontrou sua formulação – e comprovação – mais bem-acabada, décadas depois, em Taylor: o aumento da produtividade depende de uma gestão técnica e racional do tempo. Mais especificamente, é o tempo do movimento, inscrito na temporalidade dos gestos, que há de ser tomado como matéria de investimento técnico: não “o” trabalho, como algo isolado, mas “o corpo” que o anima, permite, enfim, lhe dá existência. Ainda que o corpo necessário, hoje, para o neoliberalismo não seja mais aquele do início do século XX, tal orientação permanece e dificilmente será ultrapassada: há produtividade, ou seja, mais-valia, na medida em que o trabalho in-corpora o tempo como bem. A frase de Benjamin Franklin deve ser lida, assim, na sua literalidade. Não “o tempo corresponde ao dinheiro”; não “o dinheiro compra o tempo”; não “o tempo é o meio pelo qual se chega ao dinheiro”. Na sua literalidade: tempo é dinheiro. O tempo é apenas um pseudônimo do dinheiro.


Tomar a frase de Benjamin Franklin pela literalidade nos permite encontrar ao menos três aspectos essenciais do capitalismo, interligados que são entre si, separados apenas como matéria de análise. Primeiro: enquanto for o trabalho “meio para” o lucro, sendo o lucro “meio para” si mesmo, o tempo é mercadoria-tempo, e sua face mais visível, ou literal, não é nem a moeda nem o relógio, mas o corpo humano. Segundo: o “valor” do dinheiro, em sua imaterialidade, é o mesmo que o “valor” do tempo, igualmente imaterial. Eles se “fundem”, dissemos, encarnando no humano, encontrando lugar na materialidade do corpo humano. Assim, a vida do humano – temporal e corpórea – é toda ela “meio”, mas “meio para” nada além da sua auto justificação e reprodução, já que a razão última do capitalismo, que institui sua lógica, é a sua irracionalidade: produzir para produzir lucro para continuar produzindo. Nem fim em si mesma, nem meio para algum fim, a vida-mercadoria só tem razão de ser na ausência de razão: continuar um corpo-mercadoria enquanto dispõe de algum tempo-mercadoria para, no trabalho, manter-se como tal. Enfim, o terceiro e conclusivo: não há tempo que não seja tempo de trabalho.


É possível que os últimos gestos do corpo humano que não fossem os dos movimentos gerenciados pelo trabalho tenham ficado perdidos quando da passagem para o capitalismo tardio, cuja produção se concentra, cada vez mais, no consumo e nos serviços (e, decerto, naquelas “funções” que são meros meios para a própria funcionalidade da sociedade de consumo, ou seja, que não produzem nenhum “produto”, propriamente dito, mas condições para a reprodução da sua irracionalidade: desde os operadores de telemarketing até os coachings, passando por publicitários e youtubers). Não se quer dizer que antes da sociedade de consumo neoliberal o corpo, quando fora do “ambiente de trabalho”, estivesse libertado da relação com o trabalho, exatamente porque o “fora” estava, pois, já condicionado por aquela relação. Se quer dizer que, sob os imperativos da “flexibilização”, do “empreendedorismo” e do “espetáculo”, já não há mais “ambiente de trabalho”, e o que seria um “fora” há de ser sua continuação, no máximo, não declarada.


Um tempo “fora” do trabalho nos é possível apenas como especulação, ou, sequer, pois o tempo para imaginar um tempo possível que não trabalhando já seria, ora, trabalho. Se houver outro modo de viver, ou seja, de dispor de tempo, de ser no tempo, que não trabalhando, não somos capazes de acessar se não pela força do pensamento. A questão a saber é se essa “força” empregada já não se faz no modo trabalho, e, portanto, se seu resultado – a especulação sobre um tempo que não seja trabalho – já não seria “produto”.


Via de regra, nos breves instantes em que não estamos em relação direta com a “atividade” produtiva somos invadidos pela angústia ou pelo tédio, como se fossem uma espécie de dispositivo disciplinar, instaurado em nossas entranhas mais inacessíveis, a falar sobre aquela impossibilidade: a impossibilidade de desvincular tempo e dinheiro. Se for, talvez seja também a invasão de uma memória incapaz de forjar uma lembrança, ou seja, uma memória sem imagem, sem representação, de um passado misterioso – e, se misterioso, pode ser também de um futuro – de um mundo sem capitalismo. Este mundo, porém, talvez já não possa existir nem em imagem nem em palavra (posto que já seriam “produtos”), e, estando fora do plano da “existência”, lhe restaria o lugar da “insistência”. Neste sentido, o inominável e o inimaginável, como tais, só se manifestariam, no corpo, como angústia. Ela seria a verdade de um mundo cujo tempo seria inoperante, um mundo sem dinheiro. Cumpriria, assim, a nós, acossados pela angústia, sabermos lhe inventar um gesto à altura


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A distinção entre trabalho concreto e trabalho abstrato poderia ser mobilizada para responder a pergunta se a especulação sobre um tempo que não fosse trabalho seria ou não também trabalho. Se poderia objetar dizendo que tal atividade não se confunde com a do operador de telemarketing (talvez o exemplo mais bem acabado do que seria o trabalho alienado em nossa sociedade) e que seu “produto” não seria mercadoria.


Na fase atual do capitalismo, nada escapa à mercadorização, e tampouco seria consequente discutir o quanto, ou como, cada tipo (e haveríamos de tipificar) de mercadoria contribuiu (se mais ou se menos) para reprodução deste sistema social. Se o trabalho intelectual, ou artístico, por exemplo, não se quer assumido como alienado, ainda assim não é possível fechar os olhos a todo aparato material e subjetivo disponibilizado – através da exploração mais brutal do trabalho humano e da natureza – que o permite.


Um trabalho que se pretenda concreto ou não alienado não pode duvidar ou menosprezar seu caráter mercadológico, particularmente o trabalho intelectual, sob pena de trair sua própria pretensão de concretude. É pela afirmação do seu pertencimento a um todo histórico, que não tanto faz expropriar a vida mas instituir como hegemônica certa concepção de vida, que poderá fazer (o trabalho do) luto da sua liberdade fantasiada.


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Tempo é dinheiro fala também sobre uma aparente contradição que habita o tempo cronológico: a de representar tanto a linearidade e a progressão quanto a repetição.


Cronos, se sabe, é um deus voraz e controlador que, para não correr o risco de ser desbancado pelos seus filhos, os engoliu um a um. Quanto a nós, humanos, a História nos ensina que somos “filhos do tempo”.


Peter Paul Rubens - Saturno Devorando o Filho, 1636.


Filhos de Cronos, somos engolidos, devorados por ele. Estamos “dentro” dele, e aí está sua conquista, mas também sua possível ruína. Se não é possível estar “fora” do tempo, ser “dentro” é nossa condição, de modo que supor “ter” tempo ou pleitear tomar posse dele somente constituirá um gesto possível se confrontando a sua impossibilidade. Outro modo de dizer que um gesto à altura da angústia não pode ser o de uma “gestão” do tempo, exatamente porque “gestão” é aquilo que o próprio tempo faz com nossos corpos e gestos, ora, com nossas vidas: “dentro” dele, estamos, até a morte, sendo di-geridos.


Metaforizar nossa relação com o tempo cronológico como quem está em processo de di-gestão pode ajudar a compreender aquela aparente contradição que ele porta: a de sinalizar tanto a sucessão quanto a repetição. Isso porque é esse o “curso” do processo digestivo (e, claro, também dos outros “sistemas” orgânicos), o de “seguir” repetindo-se. O “encontro” entre passar e repetir, entre processo e retorno, pode ser visualizado naquela invenção que levou a outros patamares a racionalidade taylorista: a esteira da linha de montagem fordista. Seu desenho é exemplar da própria lógica do capitalismo, pois se trata, ora, de acelerar os “meios” para chegar, o quanto antes, aos “fins” que são, por sua vez, “meios”.


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O cúmulo do encontro entre passar e repetir é o esvaziamento total do tempo como matéria espiritual e objetiva do agir, passar sem passe, sem passagem, e seu movimento não é outro que o de um sintoma. O gesto porvir há de ter o estatuto de um ato a romper com a perenidade da repetição. Mas esse ato, no lugar de instituir um sujeito, deverá criar uma passagem. Ato criador, portanto, poiético.



 

*Diogo Cesar Nunes é historiador, doutor em Psicologia e editor da Círculo de Giz.


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