Alexandre Magno Teixeira de Carvalho*
Há 66 anos, no dia 3 de novembro, Wilhelm Reich, injustamente trancafiado numa prisão norte-americana sob a sombra plúmbea do macarthismo, dava seu último sopro de liberdade.
Não obstante a inegável "guinada" à esquerda (democrática) da psicanálise brasileira nas últimas décadas, por que o nome de Wilhelm Reich permanece a provocar um silêncio, um inequívoco mal-estar, toda vez que é evocado ou pronunciado no interior de uma associação ou espaço psicanalítico? O que justificaria tamanha resistência ao nome e aos textos de Reich, até mesmo nas passagens em que Reich e Freud parecem caminhar na mesma direção? Por que o campo psicanalítico parece resistir tão silenciosamente ao nome de Wilhelm Reich? O que há de fantasma nesse nome? O que há de tão denso nesse silêncio? Há uma geografia desse mal-estar no campo psicanalítico?
Mas o silêncio não é só oral, negativo manifesto no campo da fala. Há um silêncio, um apagamento da escrita reichiana: não somente da escrita pós exclusão da sociedade psicanalítica, mas de toda a escrita referente ao período psicanalítico de Reich. É como se não tivesse havido, na história do movimento psicanalítico, um psicanalista chamado Wilhelm Reich. Teria isso relação com o caráter excessivamente militante, socialmente engajado, limítrofe do ‘perigo’ político, característico de Reich? Seria esse apagamento o silenciar de uma voz ausente que se fazia presente e insistia em pulsar e ecoar na escrita?
Será que o “sujeito da política” (Hoffmann & Birman, 2018) que em Freud esmaece (Lacan, 2008), condenado ao impossível do Real, estaria a encobrir o sujeito da política e objeto da psicanálise que em Reich se inscreve e emerge como “homem tornado ser social” (Reich, 1977: 19) em ação no horizonte da luta de classes?
O acontecimento é um corte. “O acontecimento é o próprio sentido” (Deleuze, 1974: 23) – e, acrescentaria, uma transformação e/ou ruptura na ordem do sentido. O sentido se move por entre as palavras e as coisas, é a própria fronteira. O silêncio acontece, ainda que, paradoxalmente, o tempo pareça suspenso: “o acontecimento é sempre um tempo-morto, lá onde nada se passa (...) na estranha indiferença de uma intuição intelectual (...) Nada se passa aí, mas tudo se torna (...) Nada se passa, e, todavia, tudo muda” (Deleuze e Guattari, 1992: 204). Um silêncio: o que se passa, ali onde nada (se) passa? Um sentido passou? Escapou? É o próprio silenciar um acontecimento? Revelaria que algo acontece lá onde nada (se) passa? Será um silêncio, ao mesmo tempo, condição de possibilidade do acontecimento e acontecimento? Será a história desse silêncio a sombra de uma história negada, ou, quiçá, a vergonha de uma história mal contada, uma história que ‘não pode’ ser revisitada, recordada, elaborada? Estaria esse silêncio a enunciar uma falta não simbolizada, uma falta mal preenchida por uma imagem borrada e sem som? Quando uma imagem se acopla a um som, inclusive na representação da voz ausente que a escrita provê, e recebe um nome, ela entra na história - ao mesmo tempo em que é penetrada por ela, ou seja, pelo tempo. Sem isso, não há escuta, somente significante ausente.
É curioso como alguns textos contemporâneos operam: Lacan é evocado para ‘obturar’ o buraco deixado pela obra reichiana, o que não deixa de ser uma contradição em termos psicanalíticos, já que o próprio Lacan alerta quanto à armadilha que espreita os que pretendem ‘fechar’ os buracos e não bordar limites. Em Lacan, é clara a tarefa do bordar e a função da borda. ‘Enterrar’ a produção teórico-técnica de Reich é tentar apagar uma parte considerável da história do movimento psicanalítico. O problema dessa elisão é histórico, ético, político e epistemológico: pode-se tentar obturar esse buraco, mas, metaforicamente, será sempre um remendo mal feito, daquele tipo que se percebe como um ressalto ao se passar por ele. O remendo está lá, saliência ou lapa, a revelar um buraco mal fechado (é sempre a mais ou de menos a operação de remendo).
Não se pode negar um discurso forte como o reichiano; um discurso que articula teórica e metodologicamente o discurso de Marx & Engels ao discurso de Freud e já o diz, explicitamente, no título do escrito de 1929: “Materialismo dialético e Psicanálise”. Não se pode negar a Reich o mérito de ter sido um dos primeiros a pensar seriamente na proposta de uma psicanálise materialista, dialética, historicamente referenciada, a se engajar politicamente na sua construção e a escrever sobre isso – ainda que seja possível, do ponto de vista contemporâneo, mas sem desrespeitar a historicidade de sua produção, apontar alguns equívocos nessa empreitada. Para Deleuze & Guattari (1976: 154), “Reich foi o primeiro a colocar o problema da relação do desejo com o campo social (...) Ele é o verdadeiro fundador de uma psiquiatria materialista” e, para Chemama (1995: 189), foi o “primeiro psicanalista a considerar o problema socioeconômico na gênese dos distúrbios psíquicos”.
Por que, então, elidir uma escrita que tem muito a dizer acerca da psicanálise como discurso, história, epistemologia, clínica e política?
Ainda não se tem todas as respostas, mas as questões não querem calar.
Em defesa de uma psicanálise crítica, desejante e socialmente engajada, escutemos a exortação de Deleuze & Guattari (1976: 155): “Reich, em nome do desejo, fez passar um canto de vida na psicanálise (...) Ele denunciava um medo da vida, um ressurgimento do ideal ascético, um caldo de cultura da má consciência (...)”. Logo, não há por que silenciar.
Este texto toma como base o artigo do autor Anuviar, elidir, silenciar? Notas históricas, críticas e epistemológicas sobre a permanência de um mal-estar no campo psicanalítico em torno da obra e do nome de Wilhelm Reich, publicado na revista Mnemosine, Vol.17, nº2, p. 177-222, 2021.
Referências:
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1992.
HOFFMANN, Christian & BIRMAN, Joel (Orgs.). Psicanálise e política: uma nova leitura do populismo. São Paulo: Instituto Langage / Université Paris Diderot, 2018.
LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
REICH, Wilhelm. Materialismo dialéctico e psicanálise. Lisboa: Editorial Presença, 1977 [1929].
* Alexandre M. T. de Carvalho é professor do Departamento de Psicologia da UFJF.
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