Sobre o retorno intempestivo da psicanálise na era da catástrofe
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva*
Uma leitura em contrapelo da psicanálise acompanha um triplo movimento: o da descolonização dos saberes, o da força da necessidade de uma clínica do trauma na era das catástrofes que estamos vivendo e a da busca por uma chave de leitura secular que desvende a pulsão de crueldade renovada pela necropolitica, a guerra e os novos fascismos.
As questões formuladas em os "Percursos Psicanalíticos no Brasil" (INM Editora, 2024), organizado sob a forma de entrevistas por Pedro Cattapan, consegue conectar estes desafios com a questão da formação do analista. A tensão entre a origem e a tradução na geopolítica dos saberes interroga sobre a brasilidade, a africanidade e muito mais na tradução, transformação e construção do campo clínico.

Joel Birman, fotografia: INM Editora.
As motivações, interrogações e a experimentação que são expostas na riqueza das trajetórias de 3 psicanalistas que viveram e ousaram exercer um duplo papel, na atividade clínica e no ensino e na pesquisa, sem confundir e perder de vista as causas, os condicionamentos e o caráter distinto de uma formação fora da Universidade.
A escolha do ofício, a medicina, a filosofia, a passagem pela França, a leitura dos malditos, a arte e o desafio de pensar o lugar sem perder de vista a "causa" que nasce da descoberta que é sempre relacionada com a singularidade do se colocar em análise. Um material cultural, um referencial para ler as mutações sociológicas e profissionais dentro de um lugar de grupo, associação ou Escola. Nas entrevistas dadas por Teresa Pinheiro, Jurandir Freire Costa e Joel Birman, podemos acompanhar narrativas relativamente convergentes quanto ao modo de avançar interrogando este ofício.
A psicanálise mesmo "proletariado" ainda deve ser postulada como mais próxima da arte do que de uma função profissional, considerando sempre o contexto das transformações epistemológicas e das demandas em matéria de resposta às metamorfoses do mal-estar na contemporaneidade, desde as demandas que se transformam em contextos e com as vozes subalternizadas que reclamam suas singularidades nas relações sociais. Desamparo e falta de garantias exigem um lidar com a dimensão transferencial, com o desejo do outro na intensidade imagética, na corporeidade, na era em que a saúde ganha centralidade ao lado da violência. Trata-se de ler a questão sexual e reprodutiva numa era de "epidemias".
Estamos atravessadas pela mundialização com a ação da força do enorme mal-estar que atinge o Ocidente com os desastres e a barbárie do capitaloceno, com a fúria e o terror da banalização da crueldade intensificada pela espetecularização, quando o futuro de uma ilusão funciona como um presságio do futuro anterior na catástrofe anunciada embora revestida do fetichismo, de negacionismo e da razão cínica.
Lidar com um mundo submetido a uma farmacologia atordoante exige um posicionamento claro em relação as ameaças de captura profissionalizante, aos de uma condução marcada pelo narcisismo das pequenas causas e sua mitologia possessiva e brutalista. O fazer-se psicanalista em interação com o ambiente e os desafios da época tem que considerar a bagagem, a vivência da qual emergiram experiências cuja singularidade não impede uma contribuição de um certo "autorretrato" de 3 analistas que serve para refletirmos sobre processos de aprendizagem.
Podemos dizer que uma formação em psicanálise é sempre gestada no experimento (reflexivamente prático-teórico), no divã e no "ateliê", onde se faz o desenho desta arte que sabe se alimentar de uma audácia, que não teme ser minoritária ou classificada como maldita. Como podemos ver no tecer leituras como aquela que resgatou Sandor Ferenczi, ou no esforço em ler a psicanálise numa chave genealógica com base em Michel Foucault. A relação com a política, a diferença sexual, a questão de gênero e a relação de maior horizontalidade no movimento e nas instituições de formação são objetos da pesquisa em psicanálise.
O avanço em interação com a pesquisa, nas Universidades, no campo social e no movimento (escolas e organizações) aprofunda o desafios das reflexões sobre a clínica, na relação com abordagens deste processo em que já se evita os efeitos hierárquicos e redefine o que é resistência. Estamos diante do desafio ético de lidar com a relação entre ortodoxia e mal-estar atual, no lidar com a corporeidade na etiologia, na nosologia que se relaciona com os temas da pulsão de morte, do desamparo, da psicose, da perversão, das neuroses atuais.
Os avanços no trato da transexualidade, a luta contra o racismo e a decolonialidade, a presença do feminismo e a emergência de movimentos como o Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD) fazem parte deste cenário que permite avanços no lidar com a crise da modernidade tardo-capitalista e do mal-estar na contemporaneidade. Ao considerar a escuta do sujeito humano diverso, ao destacar a relação com a política podemos dizer, como afirma Joel Birman, na sua entrevista, que: "essa valoração da democracia como forma de vida" é uma formação necessária da afirmação da psicanálise enquanto um posicionamento ético que atravessa a vida social, o conhecimento e a práxis em psicanálise. Este elo, este compromisso, atravessa o conjunto das 3 trajetórias e do organizador do livro.
*Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.
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