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O bolsonarismo e a tortura: o espetáculo da crueldade sem véus


Pedro Claudio Cunca Bocayuva*



Como todos sabem, o tenentismo (cem anos atrás), através da Coluna Prestes, golpeou a tortura, considerada um resíduo da escravidão e um obstáculo para a mudança social e política, enquanto um objetivo necessário do progresso civilizatório.


Depois de expulsar das suas fileiras e punir milhares de militares alinhados com as reformas sociais de base, o regime ditatorial civil-militar de 1964 construiu uma máquina de tortura, um sistema paralelo e complementar dentro do Estado, sustentado pelo discurso de uma razão cínica de defesa de uma guerra suja (interna) contra as forças democráticas e populares que lhe faziam oposição.


Desgastada e rejeitada, a ditadura impõe restrições ao processo de transição democrática entre o final dos anos setenta e o início dos oitenta do século passado. A impunidade permitiu que a ideologia e as estruturas da máquina de moer gente dessem sombra e legitimidade para a tolerância com a tortura. O que reproduziu a sua prática em todas as instituições e aparatos de poder armado, policial/penal, ou seja, em todo o sistema repressivo.

No contexto da redemocratização, a punição carcerária e as máquinas de matar gente mantiveram a prática da tortura como parte de um modo de governar, de administrar a miséria com as marcas racistas, sexistas e classistas. O quadro geral atual de políticas de ajuste estrutural e a destruição das políticas e instituições públicas de caráter social se realizam pela administração através da gestão pelo medo e alimentam o gozo punitivo sobre corpos e mentes. Vivemos na distopia, com a troca de um horizonte de direitos por um reforço da ideia de segurança, na lógica de ações de guerra colonial e de extermínio. Este quadro paralisa a consciência crítica pela produção do discurso da vontade de destruição da diferença com a construção dos negacionismos.


A força inercial destas estruturas de tipo necropolítico, a razão cínica, o medo do outro, o individualismo e o recalque com o fracasso social criaram as condições para ativação do golpismo. O ingrediente novo é a combinação do racismo aberto e da avidez em usar a máquina estatal. Temos o uso da mobilização de parte das Igrejas e o agenciamento do punitivismo moralista/penalista como parte da guerra híbrida contra o processo da democracia.

A naturalização do neoliberalismo, o retorno das ideologias de "guerra justa", a anarquia delirante de um revanchismo, liberaram o desejo de matar. A banalização da crueldade naturalizou a tortura e clama por acentuar as chacinas. Isto é, do genocídio em todas as suas variantes. A violência simbólica retirou os véus para a passagem ao ato. Agora, sem precisar justificar ou velar a tortura, este ato abominável atravessava as práticas de repressão/punição generalizada e abusiva, hoje apresentado como ato "heróico" pelo Presidente da República. Esta inversão de valores não diz respeito somente aos vitimados pelo regime ditatorial.


A narrativa perversa desta naturalização é o principal sustentáculo da corrupção do poder que, ao gerar o ódio como força motriz da vontade coletiva, nos coloca diante de riscos terríveis de dependência, de fragmentação social e territorial, com uma retórica de guerra civil, que aprofunda a catástrofe.


Neste momento, a perda de qualquer diferenciação ou monopólio do uso da força se tornou o centro de uma nova guerra de todos contra todos. A indiferenciação entre as instituições repressivas e os esquadrões da morte se apoia nestas operações mentais e na ideia do poder pessoal do líder e do seu séquito.


As narrativas do executivo federal nos convidam para romper com todas leis. A tortura permitida e tolerada se torna a arma suicidária pelo que destrói de códigos e normas sociais, de leis e de valores morais. Muitos acreditam na pedagogia inversa da força bruta aberta, acham que o fim do véu trará clareza para melhores escolhas por parte das pessoas. Mas o fato é que tolerar a defesa da tortura é uma conivência com a ideia de cada um por si, de ausência completa do Estado de Direito, nos lança na terra sem lei.


Neste quadro, paradoxalmente, o passo seguinte ao extermínio com banhos de sangue será, provavelmente, a liquidação das instituições policiais e militares. Se o regime de 1964 impediu a construção de um país mais justo e nos lançou na rota da extinção pelo ódio fratricida, pela degradação do valor e da dignidade humana, hoje estamos diante da intensidade da pulsão de crueldade. A implantação em curso do novo regime bolsonarista vai além do impensável em matéria de injustiça e abuso. O debate da tortura não é somente sobre os opositores ao regime ditatorial no passado, ele fala da destruição do valor da dignidade humana, por força da covardia na atualidade.


 

* Pedro Claudio Cunca Bocayuva é professor do Mestrado do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ. Coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade e Território.

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