Marcelo Fonseca*
Não sou velho. Para um outro de mim, que já fui, sou. Digo que não sou velho porque além do semblante e do gesto, a idade modificou em mim o sentido e a forma dos gostos. Hoje sei reconhecer a beleza de uma mulher; interessa-me a contribuição física e mental de uma caminhada; descobri a coisa deliciosa que é ver os filhos tornarem-se humanos, no devagarinho que a tarefa exige. A condição de alguém que já sente os efeitos da aluvião que é o vivido, torna a monotonia e a lentidão um vulcão de onde se precipitam novidades várias.
Tal variedade diz em oposição o vertiginoso modo de ataque multi-sensorial que sofrem, todos os dias, todos, quando na condição de consumidores vagabundeando displicentes, ou tentando. Por este olho assim ativo, a velhice tornou-se desde cedo uma frequência compulsiva ao salão de beleza. Vejam bem: a velhice tornou-se um problema de beleza. E de salão também. Invertamos, pois, o Borges: o bicho, embalsamado em silicone, é o testemunho da falência do homem. Bárbara insistência técnica no seio emborrachado de nossa cena ultracultural.
Desculpe-me o eventual leitor o clima remissivo que me guia o caminho da letra, mas não encontro atalho que não passe por Heidegger, de modo a me pôr no traço sinuoso do texto o rumo que o motivou, desde o nadinha de seu começo. O filósofo da Floresta Negra recomenda de imediato, falando de arte, a pergunta-chave, que tem no cerne um demonstrativo: “O que é isto, a arte?” O uso do demonstrativo torna o objeto ao mesmo tempo certo e incerto.
O demonstrativo do filósofo não é como o da manchete de jornal. Chama a atenção para o acontecimento, que desvirtua a expectativa do olhar factual da historiografia noticiosa frente ao brotar daquilo que brota, como a água em um poço, na figura de uma coisa qualquer, de uma vitória sobre o nada (talvez uma ilusão, apenas). O demonstrativo na pergunta situa, pois, o olhar na atualidade do que se aponta com o dedo e que, vale insistir, não é fato algum. Coisa fluida, alegre em seu modo singular de estar por aí, entre o ser que lhe faz falta e o ente que lhe serve de guarida.
O apontar com o dedo do filósofo repõe, assim, o presente em sua eventualidade, irredutível ao chek list do “evento” espetacular da cultura que se vende. Esse segundo ato (o espetáculo) tenta apreender a coisa historiograficamente, registrando em pontos luminosos a face visível do que há como pretensa estatística do “real”, entendido como fato. Já o “dedo duro” do filósofo habilita a história como a linguagem própria do gesto, aí fazendo emergir como que de lugar nenhum a si e ao seu objeto. Exatamente porque o problema é histórico, não se pode reduzir à condição de fato.
Apontar o fato como tal implica a dissimulação do olhar que o constitui. Sim, pois é um olhar o que se esconde por detrás do fato enquanto registro empírico da experiência. Dissimulado o olhar, dissimula-se também o caráter essencialmente discursivo na constituição do fato. Já o objeto que motivara todo o percurso, reduz-se ao símile lingüístico e/ou semiológico, imaginarizando a linguagem, ela mesma tomada como objeto – daí a impressão de metalinguagem, que não passa de verossimilhança interna enquanto “lógica do possível”.
Assim, a definição tomada como coisa postula para um fato de linguagem a condição de “real”. Está aí a estratégia ideológica do falatório da linda moça que apresenta o telejornal: conferir o estatuto de “real” para as coisas da cultura, que assim realizadas tornam-se indiscutíveis, indubitáveis como reflexo da ação sincrônica de apropriação do acontecimento, de sua eventualidade. Por isso, qualquer showzinho planejado, ensaiado e super-produzido é chamado de “evento”, num equívoco sem erro. (Diga-se de passagem, este é o lugar que pretendem para a arte a maioria dos que aceitam o apelido de pós-modernos).
Quanto à velhice, o que parece problemática é a representação que se faz dela como fato simétrico do brotar, posto que ela põe em questão o sentido de “vitória” a que me referi. É como se as certezas do fato fossem diluídas mediante a iminência do retorno da única e inconveniente certeza que há (aliás, certeza de quê?). A despeito dos esforços médico-cosméticos, a velhice acontece, e como um problema de saber (não de beleza) insiste em sua presença desde o princípio, nem mais nem menos extraordinária que o ímpeto arrogante da infância e da adolescência.
Contudo, a chance que hoje se tem de ser é pela encarnação dos atributos que a crença no fato concretiza em matéria plástica e flexível. Resta-nos, porém, o ato, que remete ao “não” que me circula o texto: falar na contramão do fato.
*Marcelo Fonseca é artista visual, mestre em Letras e doutor em Artes (EBA-UFRJ). Professor da FACHA - Faculdades Integradas Helio Alonso.
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