a psicanálise enfrentando o fascismo na nova cena teórica
[Nota sobre BIRMAN, Joel. Guerra e Política em Psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024].
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva*
Por todos os lados, sentimos sobre nossos afetos o impacto traumático da catástrofe em curso. A pulsão destrutiva se acelera. A guerra, o Estado Policial, o encarceramento em massa e o etnicidio se difundem. O narcisismo das pequenas diferenças, o medo e as fantasias destrutivas geram explosões e terror. A angústia do real do inconsciente retroalimentada pelos espetáculos destrutivos mobiliza a fúria, a horda se movimenta na direção do fascismo.
Como falar deste quadro, ou melhor, como tentar entendê-lo a partir da psicanálise na chave do “além do princípio do prazer” e do “mal estar na civilização”? A Primeira Guerra Mundial, ao lado da gripe espanhola, foram devastadoras para quebrar a centralidade do "princípio do prazer”. O que permitiu a Freud avançar e transformar a cena da autoconservação que tinha como base primária o sadismo, para o “princípio do Nirvana”, com o destaque da trajetória da pulsão de morte, que tem por base econômica primária o narcisismo.
Agimos no duplo movimento de empurrar a violência para fora e com retorno nas fantasias do imaginário, via pulsão de morte que reabre um devir hobbesiano para a humanidade, da guerras de “todos contra todos”. O retorno do recalcado fortalece esta dimensão da violência, que provém de um resto que se acumula e se projeta acompanhando os momentos em que o "mito” se desenvolve quando emerge o líder carismático que elogia a morte. Os chefes da horda servem de reflexo no espelho do brutalismo, como mostra a psicologia das massas, o que rompe com as amarras na direção perversa pela desmedida, liberando as fantasias e fantasmas da agressividade que nos habita.
A guerra reaparece no centro da vida coletiva. O Kant da “paz perpétua”, o Rousseau do “contrato social”, o Darwin da “evolução” perdem lugar com o retorno da vontade de matar, com a força do trauma e da crueldade do “estado de natureza” pela via do Um, nas figuras atuais do tirano máquina, do tirano ator funesto ou do príncipe eletrônico.
Se no plano da sexualidade temos uma abertura para o polimórfico, para o diverso e o múltiplo, se saímos de uma leitura reducionista do Édipo, vemos o sentido da inversão. A figura do pai se desloca da posição de sedução e de força para a falha. Na nova cena, ficamos sem garantia, pois algo se desvela e emerge no lugar da “lei”, algo se quebra na lógica da civilização. Desde há muito, modernidade não é sinônimo de progresso ético. O traçado dos traumas desenham catástrofes cada vez mais significativas que não saem do “tudo que é sólido. ..”.
Como retirar o poder das mãos da leitura masculina e liberal burguesa da psicanálise? Como romper com a leitura restritiva de Ernest Jones acompanhando o avanço ético e político da questão posta por Freud na “nova cena teórica”, desde esta inversão da sua reflexão cultural e histórica que compreende o ir “além....”? Quem sabe, ao lado de pensar a condição humana talvez possamos avançar, como mostra Joel Birman, na questão do desejo do analista ao mostrar o limite da dominação e o desamparo dos sujeitos.
Neste livro, temos uma leitura genealógica e histórica realizada por Joel Birman, com o destaque dado ao corte sociológico, ao destacar o fato histórico da mudança qualitativa promovida pela abertura do exercício da clínica, com o ingresso de profissionais graduados em psicologia, como condição para o impulso de uma “proletarização da psicanálise”. No momento histórico em que vivemos, a suposta neutralidade da psicanálise é claramente destruída pela violência neoliberal, pelo retorno das forças reacionárias com a “guerra civil” mundializada. Mas, por outro lado, este ingrediente democratizador da pratica clinica se faz ao lado das forças sociais emergentes das periferias, com as lutas abertas desde os anos sessenta, de classe, sexo e raça contra o capitalismo, a colonialidade, o racismo e o patriarcado sexista. Lutas que abrem para um novo tipo de contra-hegemonia, como vemos no pensamento político de Laclau e Mouffe ao tratarem do populismo.
Na narrativa desta história da psicanálise gestada no contrapelo, desde o trauma (Ferenczi) e da neurose de guerra, desde 1914 até o pânico em 2024, temos uma reflexão precisa para situar a relação entre o método da associação livre, a prática psicanalítica, as forças éticas e o agir estético que buscam contextualizar o tornar-se psicanalista a partir da relação com o antifascismo.
O retorno da política em muitas aproximações entre Gramsci, Fanon, Butler, Foucault, Lacan, Mbembe ajuda a mudar a escuta da dor e para entender a fúria que emerge. A morbidez deve ser entendida sem ilusões, de modo a lidar com os sintomas de sofrimento que não são mais contidos pela normalização e pela vigilância no descontrole em rede na modernidade liquida.
A tarefa inicial é interna ao campo da psicanálise, onde cabe romper com o fantasma da neutralidade. Romper com a regra que permitiu a emergência de figuras como Amílcar Lobo, o psicanalista da tortura. O cinismo e o negacionismo não cabem em psicanálise, como podemos ver neste trabalho de resgate da reflexão antropológica, ontológica e política da obra de Freud.
O posicionamento político exigido nas lutas do século XXI contra os negacionismos segue os traçados desta “cena teórica”, quando perdemos a ilusão teológico-politica que foi alimentada pela ONU, a do “não matarás”, ao mesmo tempo em que necessitamos mais do que nunca de uma política do cuidado face ao quadro de catástrofe financeira, ambiental, climática, sanitária, epidemiológica, informacional e bélica.
Considerando as 3 ecologias (social, mental e ambiental) de Guattari, a nova guerra de posições deve ser apoiada no esforço das vozes subalternas que desejam romper com a servidão frente a lógica destrutiva do “capitaloceno”. Romper com a ideologia do “fim da história” que se alimenta do individualismo possessivo e do narcisismo das pequenas diferenças. Inverter os efeitos que alimentam o pensamento dominante da politica como guerra, que vai na direção de uma explosão de eventos genocidas e da força da banalização da crueldade.
O negacionismo e a guerra podem ser lidos e enfrentados com apoio engajado de movimentos como o PUD - Psicanalistas Unidos pela Democracia. O livro de Joel Birman é claro e necessário para pensarmos a psicanálise na relação ética e estética com a democracia como processo, muito além dos modos mórbidos da representação e dos regimes de exceção e do excesso que vigoram por toda a parte. Sem isso, é difícil mostrar como a razão cínica desliza e abre caminho para o fascismo, como uma espécie de paráfrase quando lemos a cena contemporânea na chave da pulsão de morte.
Tudo isso nos lança além do princípio do prazer tão próprio à lógica fetichista do capital. Não por acaso, Marx abriu a chave da “descoberta” do “sintoma” no valor abstrato desde a formulação sobre a mais-valia, que foi recuperado numa certa relação com a psicanálise desde a leitura Lacaniana. O que a teoria critica dos frankfurtianos e do freudo-marxismo soube situar na leitura do racismo, da psicologia de massas do fascismo, da indústria cultural, do Estado totalitário e da aniquilação, reaparece aqui na leitura de Freud, em outras linhas.
No terreno da linguagem e na teoria da pulsão, em Lacan com Althusser e Foucault com Lacan, a cena contemporânea se revela na luta teórica, com um papel decisivo de ruptura e aproximação com a reflexão da esquerda (em direção diversa de Politzer). A subjetividade, os discursos, a ideologia como cimentos do real são atravessadas pelo questionamento da teoria das pulsões, que resgata a leitura freudiana sobre a relação com o “outro” como inimigo. Afinal, o inconsciente é a política.
*Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.
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