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O CICLO VIRTUOSO DO DECRESCIMENTO

Lina Raquel de Oliveira Marinho*


OS 8 "ERRES": REAVALIAR, RECONCEITUAR, REESTRUTURAR, REDISTRIBUIR, RELOCALIZAR, REDUZIR, REUTILIZAR, RECICLAR.


O chamado ciclo virtuoso dos oito “erres” do Decrescimento pretende, dentre outros “erres”, reavaliar nossas históricas e mais atuais premissas e prioridades existenciais. Ou seja, ir ao encontro, enquanto arena de debate, pensamento em movimento, discurso e discussões, de valores que demandem reavaliação por parte dos seus sujeitos conforme as relações sociopolíticas e econômicas que estabeleçam, tais como o altruísmo, a cooperação, o prazer do lazer e o gosto pela obra sobre a eficiência produtivista, por exemplo.

Este reavaliar de valores representaria o encontro com a busca por novas bases de vida, produção e relações sociais. A oportunidade de resgatar nosso senso de justiça, nossa capacidade de elogiarmos a diferença, nosso dever perante nossos sentimentos de solidariedade, o respeito à política e o coletivo e à nossa vida espiritual. Este “erre” acontece na prática, por exemplo, priorizando iniciativas tais como aquelas que se organizam em torno de, e discutem o papel e a importância do agronegócio internacional e as produções agrícolas transgênicas, além das iniciativas práticas que pretendem reavaliar nossos hábitos alimentares e promover debates, discussões e ações concretas em torno do nosso elevado consumo de carne, por sua vez, como acontece nas redes de atuação das “Hortas Urbanas” e da iniciativa: “Segunda Sem Carne".


Juntamente com este exercício do reavaliar estaria o exercício do reconceituar, em um momento seguinte, mas ao mesmo tempo sobreposto e tangente a este. Diante então de outros valores, aqueles (re)avaliados, ou seja agora resgatados e responsáveis por desencadear novas crenças e sentimentos nos indivíduos e, portanto responsáveis pelas possibilidades de um novo agir para este sujeito, cumprir-se-ia o reconceituar de diversos termos e conceitos, de maneira a convergi-los com as propostas dos novos/velhos valores em cena. Novos por passar a ser parte cotidiana de um espaço-tempo recente, mas velhos por terem estado sempre presentes, ainda que de forma latente, pairando sob as formas de existência humana. Caso contrário, e se assim não o fosse, como poderíamos dizer que se trata de um reavaliar e reconceituar? Ou seja, um avaliar e conceituar de novo, que resgata as bases que abandonamos em nome da lógica do capital, que se institucionalizou de tal forma a ponto de se fazer maior do que a soma de suas partes, expandindo-se para lugares, tempos e contextos até possivelmente indesejáveis de seus fundadores. (LATOUCHE, 2009).

São as múltiplas iniciativas de reconceituar que nos permitem em discurso das nossas ações políticas, empreender e institucionalizar práticas que superam diferenças de gênero, que asseguram licença à paternidade, que legalizam o aborto, que reconhecem a prostituição como profissão, dentre outros.


Na esteira escalonada do reavaliar e do reconceituar nisto da ideia de um ciclo virtuoso propriamente, estaria também todo um processo de redistribuir: diante de outros valores e orientados por outros conceitos, o redistribuir teria grande efeito sobre a distribuição das riquezas no planeta e os atuais níveis de acesso ao nosso patrimônio natural.


A consequência econômica direta da redistribuição de recursos, e consequentemente novos formatos de acesso por parte da sociedade aos seus recursos essencialmente necessários, seria a satisfação imediata das necessidades materiais primárias e com isso a redução do consumo diante do supérfluo, pela própria ausência da necessidade de produção e consumo de um excedente que vai muito além do necessário, pelo próprio abandono do transferir ao consumo a satisfação daquilo que a partir desta redistribuição já se terá alcançado.


Ideologicamente, não haverá mais faltas materiais a se cumprir no exercício do consumo pelo consumo. A redistribuição de riquezas assegurará as condições básicas de existência a todos os indivíduos e que, portanto, não precisarão mais ocupar majoritariamente o seu tempo em torno das condições de trabalho e produção, que lhes asseguravam a moeda de troca necessária para consumir aquilo que pelos excessos da lógica do capital e da competição se fizeram cada vez mais inalcançáveis e distantes. (LATOUCHE, 2009).


É deste ciclo virtuoso no qual encontramos a redistribuição que questões como o provimento de um rendimento incondicional básico (RBI) e os impostos e taxas (re)distributivas e limitadoras do acúmulo sobre as heranças, por exemplo, vêm à tona das discussões e políticas.


Haveria ainda neste desencadear sucessivo de medidas revolucionárias o desejo do relocalizar, ou seja, produzir localmente, o essencial, aqueles produtos destinados à satisfação imediata das necessidades básicas e materiais. “Toda produção que possa ser feita em escala local para necessidades locais deveria, portanto ser realizada localmente. Se as ideias devem ignorar fronteiras, os movimentos de mercadorias e de capitais devem, ao contrário, limitar-se ao indispensável.” (LATOUCHE, 2009, p. 49).


Para Latouche, tudo quanto possa ser decidido localmente assim deve ser feito, o que implicaria em um relocalizar para além das dimensões mercadológicas e econômicas. Seria um relocalizar também cultural e político, processo que em muito empoderaria novamente os indivíduos e resgataria neles e por eles suas dimensões sociológicas e políticas, suas dimensões ativas, suas capacidades de escolha, e deste resgatar destas habilidades, e para que elas se cumprissem o mais próximo de sua própria concepção ideológica, inevitavelmente assistiríamos ao despertar de muitas consciências críticas, para um processo de completa autogestão e criatividade, ao contrário da pós-moderna servidão voluntária e da falácia dos poderes representativos em regimes democráticos que pouco ou em quase nada dizem respeito às lutas, crenças e necessidades dos grupos e povos que eles representam.


Isso porque os níveis locais de tomadas de decisões, de produção e consumo podem se permitir ocupar de métodos e instrumentos de negociação, gestão e cooperação menos hierarquizados, ou seja, burocratizados e departamentalizados, evitando que grandes e complexas estruturas institucionais sobressaiam aos próprios desejos e competências do sujeito, alijando estas estruturas da servidão voluntária que também cumprem em relação à lógica do capital e os ditames de seu sujeito automático. Segundo Santos (2005), somente o local favorece a expressão do lugar, enquanto que o lugar seria esta dimensão apropriada de solidariedade, o lugar seria um “espaço solidário”; seria a possibilidade de “resistência aos processos perversos do mundo, dada a possibilidade real e efetiva da comunicação, logo da troca de informação, logo da construção política.” (Id, p.253).



No que diz respeito ao relocalizar, a política do Decrescimento vai propor ainda que através deste procedimento possa haver uma autolimitação das necessidades propriamente materiais e de existência, ou talvez um redefinir destas necessidades, daquilo que julgamos necessário e de fato não o é. Neste contexto do necessário, o relocalizar produtivo diria que uma determinada região "A" que produza com mais eficiência um produto ou bem "X", deva então viver a partir deste produto e suas possíveis combinações e derivações de "X", com o necessário de "X", sem a máxima da acumulação ou da geração do excedente que busca através da mercantilização e comercialização dos bens e produtos excedentes imprimir cada vez mais valor de troca e uso a este excedente, e, portanto sempre aumentar suas margens de lucro; uma determinada região "B" que produza com mais eficiência um produto ou bem "Y", deva fazer exatamente o mesmo, e nenhuma das regiões precisaria de artifícios produtivos excedentes e prejudiciais ao meio ambiente, produzindo aquilo para que não tem eficiência e nem trocando os produtos de maneira a criar necessidades inexistentes anteriormente em cada uma das regiões.


O propósito da política do Decrescimento é o de enfatizar o abandono da busca pelo crescimento ilimitado, o qual acarreta consequências desastrosas para o meio ambiente e, portanto para a Humanidade. O Decrescimento não se pretende existir por si mesmo, como a lógica capitalista do crescimento pelo crescimento, onde não há, por isso, desenvolvimento que seja duradouro e nem sustentável. O Decrescimento pelo Decrescimento representaria um crescimento negativo, ou seja, manobras políticas e econômicas que permitissem ao atual sistema e seu capitalismo, “avançar recuando” e numa sociedade de crescimento não há nada pior do que o não crescimento, ou este crescimento negativo, que leva à diminuição da velocidade do crescimento e com isso mergulha a sociedade em altas taxas de desemprego, acelerando o abandono de programas sociais por parte do Estado e suas políticas públicas. Ao contrário, o Decrescimento se pretende como um projeto alternativo para uma política do que Latouche (2009) chamou de “após desenvolvimento”.


Latouche (2009) gosta de descrever o caráter de urgência do contexto social, político e econômico no qual nos encontramos explorando a metáfora que constrói acerca do crescimento de uma alga verde em um lago. O autor considera que se fôssemos um lago e nele habitasse uma alga verde cujo crescimento é geometricamente o dobro do seu tamanho anterior a cada ano, e que o tomar por completo do lago levaria à asfixia de todo o lago e suas espécies por falta de oxigenação, e nestas circunstâncias lhe perguntassem quanto tempo ainda teríamos até a implementação de um modelo alternativo ao capitalismo, ele diria que: o lago neste exato presente momento está tomado pela metade pela alga verde.



Na esteira das suas metáforas, aproveito ainda para destacar que o símbolo adotado por este movimento sociopolítico de resistência e superação, o decrescimento, é um caracol. Isto porque tem a intenção de destacar que os caracóis constroem suas conchas decrescendo da espiral mais larga, ou de maior diâmetro para a espiral menor, tomando o maior diâmetro a partir do peso que realmente conseguirá carregar conforme as dimensões de seu corpo e tamanho. Nós assim também o deveríamos fazer ou ter feito, começado do “diâmetro de exploração” natural suportável e decrescido em níveis de exploração daquele em diante, assim não teríamos sobrecarregado nosso planeta, ecossistema e vidas.


Enquanto proposta ou programa eleitoral próprio o ciclo virtuoso dos “erres” do Decrescimento é a intenção discursiva e prática de muitas possibilidades de transformação e mudança, e nenhuma iniciativa por mais singular e pontual que seja não estará afastada da margem de consciência crítica possível e desejável, nem será exclusivamente uma experiência “pequena burguesa”, e terá impacto sociopolítico coletivo concreto sempre que cada um destes “erres” assumirem também e conjuntamente no cerne de suas questões um questionar autorreflexivo final de saída e superação em torno das contradições internas mais expressivas da nossa atual sociedade capitalista: liberação de trabalho vivo e exploração ilimitada.

 

Referências:

LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

SANTOS, M. O retorno do território. OSAL: Observatorio Social de América Latina, Buenos Aires, v. 6, n.16, p. 251-261, jan./abr. 2005.

 

* Lina Raquel de Oliveira Marinhoé doutora em Filosofia Política pela Universidade da Beira Interior - Pt., autora do livro Decrescimento e consequências humanas (ed. Gramma).


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