Lina Raquel de Oliveira Marinho*
A adoção de uma palavra como decrescimento implica a todos aqueles que dela forem dispor a descolonização de seus imaginários em torno da cultura única e exclusivamente baseada no crescimento. É uma palavra cuja formação ortográfica e semântica não possibilita outros usos, evitando que o entendimento em torno dela seja progressivamente incorporado ao atual modelo e conjunto de conceitos que dialogam com as dimensões e esferas do crescimento. Ou seja, não há possibilidades, do ponto de vista semântico, que a palavra decrescimento seja apropriada ou cooptada pela lógica sistêmica atual, nem mesmo pelas convenções e entendimentos em torno do que se convencionou chamar de desenvolvimento sustentável, pois ainda assim temos por desenvolvimento formas e maneiras de crescimento, e, de fato, estamos falando em decrescimento.
As raízes etimológicas da palavra decrescimento são comuns à palavra descrença, e assim se dá em todas as línguas de constituição latina como o francês, o italiano e o espanhol. Não por acaso este é também o objetivo da política do Decrescimento, cuja própria terminologia se justifica por querer promover a descrença em torno da lógica do capital, possibilitar ao sujeito descrer da sua atual condição existencial e seus modos de produção. Vale reassaltar, porém, que esta analogia comparativa construída em torno das similaridades etimológicas entre as palavras (des)crença e (de)crescimento é derivada das interpretações políticas do próprio movimento. Isso porque esta analogia não aparece diretamente nestes moldes em respectivos dicionários de etimologia.
O termo, que foi inicialmente cunhado em francês, como já sabemos, enfrentou suas maiores dificuldades de tradução justamente para o inglês, cuja base linguística não é a latina, e, portanto, as formações etimológicas e as raízes das palavras não contribuem para esta leitura em torno da descrença. De toda forma, e ainda que pouco tragável (e sem maiores oportunidades etimológicas explicativas), a palavra que prevaleceu e permanece em inglês para traduzir o movimento é Degrowth, ainda que se tenha pensado em palavras e até neologismos tais como ungrowth, dedevelopement, e sendo talvez a melhor tradução para o inglês: decreasing growth (LATOUCHE, 2012).
O projeto do Degrowth, como ficou então traduzido para o inglês, não representa um conjunto de passos, por exemplo, que seriam dados para trás, mas sim um conjunto de passos a serem dados para o lado de fora desta lógica que valoriza e incentiva a possessão do excesso. Isso porque não se trata de um projeto de depredação ou empobrecimento voluntário, mas sim uma tentativa de construir uma nova vida, sob outras bases, como, por exemplo, a simplicidade, o compartilhar e a restrição ao contínuo, ilimitado, e, portanto, desmedido. (ABRAHAM, 2011).

A política do Decrescimento vem sendo discutida sob esta titularidade aproximadamente desde 2008, quando então ocorreu em Paris a Primeira Conferência Internacional sobre o Decrescimento. O termo, que foi cunhado pelo professor emérito de economia na Universidade de Paris-Sud XI, Serge Latouche (que se declara um objetor do crescimento), teve suas primeiras formulações ao final dos anos 60, a partir de autores como André Gorz e, sobretudo Cornelius Castoriadis e Ivan Illich.
Naquelas décadas já havia uma perceptível intuição de que existiriam limites físicos ao crescimento econômico pretendido desde sempre como ilimitado, especialmente em um planeta de recursos finitos. Esta intuição socioeconômica esteve presente, por exemplo, nos estudos do economista britânico Malthus (1766-1834) desde o século XVIII. Ele foi um dos primeiros economistas deste século a correlacionar os termos de qualidade de vida e modo de produção da época aos limites da exploração de recursos naturais finitos, e para uma população em constante crescimento demográfico.
De toda forma, foi somente com o avanço da ciência da termodinâmica que todos os efeitos científicos necessários a esta constatação intuitiva se cumpriram. As transformações de energias em suas mais diversas formas, como calor, movimento e outras, passam a ser vistas como não sendo totalmente reversíveis, princípio da entropia conceituado no contexto dos estudos da termodinâmica e que postula não haver reversibilidade das transformações entre energia e matéria.
A despeito do avanço da ciência termodinâmica e da introdução técnica e prática do princípio da entropia que a acompanha, foi somente no século XX que esta conceituação se aplicou à lógica do modo de produção do capital, predatória dos recursos finitos do planeta na medida em que privada de consideração sociopolítica prática capaz de reconhecer este contexto de finitude dos recursos, e, portanto, incapaz prever sua futura escassez. Somente a partir de então ela adquiriu propriedade discursiva e passou a ser aplicada ao contexto de exploração e produção do modo capitalista. Como destaca Latouche (2009), apenas nos anos 70 a questão da ecologia foi desenvolvida no cerne dos estudos econômicos.
A consequência disso, ainda nos dias de hoje, é o constante desperdício dos recursos escassos disponíveis e a subutilização de fluxos abundantes de energia como a energia solar, do vento, das marés. Ainda nos tempos de hoje “a teoria econômica neoclássica contemporânea mascara sob uma elegância matemática sua indiferença às leis fundamentais da biologia, da química e da física, sobretudo as da termodinâmica.” (COCHET, apud, LATOUCHE, 2009, p. 15).
No contexto deste movimento de resistência alternativa, gosto bastante da estratégia de alguns autores que preferem falar daquilo que o movimento não é, especialmente conforme aquilo que pode suscitar em um primeiro momento ao imaginário das pessoas, para então ir dizendo exatamente daquilo que se trata. O Decrescimento, e todo o impacto na verdade que esta expressão promove, enquanto palavra de ordem e projeto político, diz respeito ao consciente e defensivo desejo que se quer pulverizar em torno da construída necessidade social e econômica deste crescimento contínuo.
Sendo assim, poderíamos dizer, conforme Abraham (2011), que o Decrescimento não é um projeto de depressão econômica, nem mesmo de recessão, mas sim uma proposta que pretende que a importância que hoje a esfera econômica ocupa em nossa sociedade e em nossas vidas decline.
O Decrescimento não é uma forma de desenvolvimento sustentável, palavra esta que por si só traz em sua semântica alguns problemas como paradoxos e pleonasmos, isso porque todo desenvolvimento significa crescimento sustentável. Logo, é como se estivéssemos lendo: crescimento sustentável sustentável, e no fundo o desenvolvimento que se promove pela lógica do capital não é nada duradouro e muito menos sustentável. A política em questão é anticapitalista e tenta rejeitar suas formas de justiça social e economia verde, sejam provenientes da iniciativa privada e ou pública.
A Política do Decrescimento não é comunista. Dizer que o programa político do Decrescimento é anticapitalista não é dizer que ele é comunista. Talvez até hoje só tenhamos cunhado politicamente estes dois termos, mas não se trata no Decrescimento de comunismo; ele talvez dialogue com o que à época ficou conhecido como sendo racionalização ecológica, e que fazia parte do projeto originário do Socialismo. Trata-se de um programa de ação política que respeita as exigências ecológicas atuais, mas também não se pretende caminhar em direção a um ecofascismo ou ecototalitarismo robusto. Não se pretende que a reprodução das bases da vida seja organizada no âmbito de um eco-tecno-fascismo.
O Decrescimento é um projeto político também apartidário, nem de direita e nem de esquerda. Não se trata de uma nova reprodução dos discursos de antiprodutivismo nem nos entendimentos da direita e nem nos entendimentos da esquerda. Os autores do termo vão inclusive além para dizer que precisamos de um partido do Decrescimento. O Decrescimento tem um profundo projeto antiglobalização e antiliberalismo econômico. (LATOUCHE, 2009)
O projeto do Decrescimento possui, portanto, um programa eleitoral próprio, porém, é importante frisar, que é ainda não partidário. O que se tenta evitar no momento é que o projeto do Decrescimento abandone as realidades sociais e se encerre em um jogo político eleitoral, antes mesmo que estejam reunidas todas as condições necessárias para a implementação de seu programa eleitoral, que consiste em um círculo virtuoso dos chamados oito “erres”: “reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar” (LATOUCHE, 2009, p. 42). O Decrescimento reconhece que o importante é uma mudança radical de rumo, isso porque seu projeto não é assimilável no capitalismo. O que se pretende é uma superação da atual lógica e, portanto, “importa criar as condições para tal mudança”. (LATOUCHE, 2009, p. 108).
O Decrescimento é um movimento utopístico, como diria Wallerstein (2003), na intitulação de um dos seus livros. É uma iniciativa que busca constituir-se enquanto arena de debate e discussões visando toda a possibilidade implementativa e concreta de se criar um novo mundo a partir de uma outra sociedade, de novos valores e crenças econômicos e políticos, sem os riscos de uma nova universalização e naturalização de orientações hegemonizadas, mas com a certeza de valorização da pluralidade. Obviamente, são muitos os desafios em torno deste projeto; são múltiplas as dificuldades de se alcançar a possibilidade de ser e estar fora, mesmo dentro de uma determinada lógica que não permite ou assume possibilidades de um fora. E talvez ainda falte, por isso, uma força maior e melhor conceitualmente canalizada do movimento em torno de uma crítica radical da própria sociedade do valor e sua estrutura naturalizada.
A tudo isto, pretender-nos-emos nesta coluna, seguir apresentando este movimento de resistência; seu programa eleitoral próprio e os desdobramentos conceituais e práticos deste ciclo virtuoso dos 8 “erres”; suas conferências internacionais, suas vozes de resistência presentes e seus interlocutores; suas limitações teóricas e práticas; suas intenções plurais de alternativas de saída e superação; seu encontro com muitos e variados outros movimentos na mesma direção, até compreendermos se todo este atual esforço decrescentista é só mais um, como nos diria Gorz em seu livro Ecológica, ou ainda mais um, como nos diria Jappe em seu livro Sobre a Balsa da Medusa, esforço!
Referências
LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
______. Salir de la sociedad de consumo: voces y vías del decrecimiento. Barcelona: Octaedro, 2012.
WALLERSTEIN, I. Utopística ou as decisões históricas do século vinte e um. Petrópolis: Vozes, 2003.
ABRAHAM, Y.M. Litlle “Vade Mecum” for the Growth Objector. 2011. Disponível em:
< http://montreal.degrowth.org/>.
* Lina Raquel de Oliveira Marinho é doutora em Filosofia Política pela Universidade da Beira Interior - Pt., autora do livro Decrescimento e consequências humanas (ed. Gramma).
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