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SALVE-SE QUEM PUDER!

Diogo C. Nunes*


1.

As três principais matrizes culturais e linguísticas que constituíram isso que se entende por Ocidente nos legaram ao menos três sentidos possíveis ao que chamamos de “verdade”. A Althéia grega tem a ver com a memória, ou, mais especificamente, com o não esquecimento. Veritas, do latim, fala sobre a veracidade de um testemunho. O Emunah judaico corresponde à fé, mais propriamente à confiança na promessa.

No lugar de pensar aproximações e distensões entre verdade, veracidade e verossimilhança, podemos buscar ver como lembrar, testemunhar e confiar, ainda que podendo apontar, cada qual, a realidades e questões distintas, acabaram, no “caldeirão cultural” ocidental, por produzir um outro sabor e um outro feitiço.

O não-esquecimento marca o lugar do presente em relação passado, de modo semelhante à verdade do testemunho, pois, em ambos casos, trata-se de “presentificar” algo passado (em um pela memória, em outro pela factualidade). Ou seja, se, pela memória, o passado se faz presente, o mesmo ocorre com o acontecido em relação ao dito. A confiança na promessa, contudo, corresponde a um tipo de engajamento diferente daquele acionado pela Veritas. Enquanto nesta está em questão a correspondência entre o que é dito e o fato acontecido, na promessa o sujeito se engaja numa “verdade” que não é a do fato, mas, ao contrário, numa “verdade” que não só não cabe no fato, como é sua fiadora. A frase que diz ser preciso “ver para crer”, nela, se inverte: o sentido daquilo que se vê depende da relação afetiva que se estabelece com aquilo que é visto.

O parhmakón que deriva do encontro entre Althéia, Veritas e Emunah é aquele que envolve fala e tempo, ou, se quisermos, é o da narrativa. Ora, a verdade depende do tempo (lembrança, testemunho e confiança na promessa) que, por sua vez, se institui “no presente da verdade”: no presente do testemunho, no presente da lembrança, no presente da confiança. A verdade deste encontro é o do engajamento daquele que fala, pela fala. Não se trata de qualquer “dizer”, mas de uma fala que dá sentido ao tempo. O tempo é efeito da verdade – é efeito do engajamento, pela fala, do sujeito no próprio tempo.

O contrário da verdade não seria, então, nem o engano, nem a falsidade (ou a mentira), tampouco a descrença. Contrários à verdade são um presente sem passado e sem futuro, uma fala sem sujeito, uma racionalidade cínica. Traços da corrosão da verdade encontramos a todo instante como predicados que devem ser cultivados: para o mercado de trabalho, para uma vida saudável, para ter “vida social” – não fazer inimigos e não frustrar as expectativas daqueles que nos querem bem –, para, inclusive, nos mantermos “bem informados”. Seu exemplo mais bem-acabado é o de um jovem que, ao ser perguntado pelo futuro, não vacila em responder “tanto faz”. O brutal “teor de verdade” desta fala é a percepção de que, neste mundo em que a verdade corrói, trata-se, sem outra melhor palavra, de sobreviver.


2.

A luta pela sobrevivência não é a luta pela vida, e não seria outro o motivo de Agamben vir insistindo tanto na diferença fundamental, já apontada por Benjamin, entre uma coisa, zoé, e outra, bíos. A decadência da verdade enquanto confinamento do tempo num eterno presente, um presente desabitado de passado e de futuro (desabitado de memória e de esperança), corresponde ao império do cinismo, em que o sujeito falante diz aquilo que ele espera que o outro espere que ele diga. Em outros termos, no cinismo a confiança não é depositada na promessa, mas na crença que se tem de que o outro creia que eu devo agir como quem crê. O desejo se movendo e se socializando por procuração não pode sinalizar senão a uma cultura da melancolia e da paralisia. Adorno havia visto nesta “aderência” cínica sintoma de um medo ancestral: o de ser abandonado, de não ser reconhecido. No nosso caso, e de modo, quiçá, mais literal, ela sinaliza à própria sobrevivência. Assim, a sensação de uma catástrofe iminente é denegada pela fala que consente ao seu destino, mostrando disposição para qualquer tipo de atividade, seja ela qual for. É preciso estar “disposto”, ser flexível, se adaptar às circunstâncias, e, assim, coachings de todos os tipos (inclusive pais e professores) orientam os seus a darem ao desespero roupagem de alegria e vitalidade. Nada pode ser mais cínico e, ao mesmo tempo, triste.

A intimidade essencial entre verdade e utopia foi apontada por Adorno quando disse que a sociedade emancipada não é a da realização das “potencialidades humanas e da riqueza da vida”. Na definição de Jameson, trata-se do “afastamento daquele impulso de autopreservação”. Isso porque “a única delicadeza se encontraria no mais grosseiro: que ninguém mais precise passar fome”. Toda aquela “riqueza da vida”, todas as “potencialidades humanas” nos são, simplesmente, inimagináveis. Nós, que vivemos pelo dia, perdemos a verdade. Isso não quer dizer que nossa vida seja de mentira, nem que este mundo seja falso. Ao contrário. Falsa é a delicadeza que dissimula o mais grosseiro, como é engodo qualquer imagem que se apresente como sendo a de um “mundo melhor”.


3.

À autopreservação corresponde o medo: de ser abandonado, de não ser reconhecido. Se não é todo e qualquer medo um só: o de não existir como pessoa, o de não ter seus códigos corporais e de fala “lidos” por um outro. É esta a condição do refugiado, condição que, para Agamben, prefigura a de todos nós, meros sobreviventes. O refugiado é aquele “estrangeiro” que, não tendo seus códigos culturais “decodificados”, não é lido como um corpo humano, mas apreendido como mero corpo orgânico (dizendo de outro modo: o refugiado é aquele estrangeiro que não dispõe do código universal do dinheiro). Ele é um pedinte de reconhecimento – quer ter sua condição de “humano”, de “pessoa”, garantida por alguém – mas sequer há meios de fazê-lo: aquele a quem ele dirige o pedido não é capaz de entender sua súplica. Seria esse o medo fundamental: ser estrangeiro na própria terra natal. Daí que a “preservação” de si mesmo passa pela aderência desesperada e cínica, e qualquer sinal de diferença pode ser uma ameaça. Que sobrem algumas migalhas de reconhecimento é melhor que não ter lugar algum para chamar de seu, e, por isso, se aceita mesmo as categorias mais depreciativas. Ter um nome, ainda que não seja um “nome próprio”, é melhor que vagar na pura invisibilidade. Por sorte, o impulso apolínio da classificação de objetos em categorias não tolera sobras, nem que para isso deva empregar o rótulo “invisível” a determinados sujeitos.

O sacrifício demandado pela autopreservação é o do estrangeiro que habita cada sujeito. Todavia, como ele é insistente – ele pode ser chamado, inclusive, pelo nome de “insistência” –, não se trata de tarefa fácil. Por isso há tantos pedintes que não cessam de ex-pôr seus rostos auto-fotografados bem de frente, numa súplica desesperada de que alguém, sabe-se lá quem, lhes garanta “suas” identidades. O vínculo entre depressão e cinismo ainda está por ser aclarado em seus meandros, detalhes e cacos, mas deve residir no caráter insuportável de, num mundo “feito para você”, cujas possibilidades de gozo são infinitas para quem é “espontâneo” e tem “vitalidade”, se haver de lutar para manter-se sobrevivendo.

 

*Diogo Cesar Nunes é historiador, doutor em Pscologia Social, professor do curso de Psicologia da UNIABEU Centro Universitário e assessor pedagógico da ENSP/Fiocruz.

ESCRITOS
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