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ESCRITORES DA LIBERDADE

Wallace da Costa Brito*


A personagem principal do longa-metragem é Erin Gruwell (Hilary Swank). Recém-chegada à escola de um bairro da periferia, nos EUA. Erin resolve investir na nova profissão, agora como professora. Assume uma turma de alunos adolescentes, considerados problemáticos, com histórico de conflitos com a lei. A direção e o corpo docente desprezam estes alunos, desacreditando-os e recusando-se a confiar e investir neles.

Sua função era ensinar língua inglesa àquela turma na qual havia pessoas de diferentes origens: negros, latinos, orientais e um branco. Estas diferenças são encaradas, cotidianamente, com hostilidade e violência, em clima de enfrentamento constante. Para cada um dos alunos, há identificação com uma entre as gangues locais e, para alguns, mais que isso, há vinculação e colaboração. A realidade das ruas é, por extensão, transposta para a sala de aula, na qual prevalece a intolerância, a separação, a guetização. Um abismo os separa, impedindo qualquer interação positiva. A realidade e a vida mesma desses adolescentes tinham as marcas da marginalidade (como estar à margem), da opressão, dos (pré-)conceitos e da exclusão que resultavam, no dia a dia, em ódio e violência urbana.


Recebida de forma hostil e desrespeitada pelos alunos, Erin é também desencorajada por seus próprios colegas a desenvolver o trabalho com seriedade e dedicação. O início foi bastante difícil, tendo em vista o quadro “caótico” em que se encontrava a turma. Desse modo, não conseguia atrair a atenção dos alunos e motivá-los. A partir das dificuldades para implicá-los no processo educativo, elabora, criativamente, um planejamento a partir da realidade e história deles, falando-lhes uma linguagem acessível e compreensível. Aos poucos, dia após dia, consegue cativá-los, pois os trata com respeito e dignidade. Incentiva-os a viverem novas experiências, não limitadas apenas à sala de aula. A vivência na escola com as aulas de Erin acentua-se tanto a ponto de contagiar, gradativamente, as visões de mundo dos alunos, bem como suas trajetórias, sentimentos, percepções acerca da vida e, até mesmo, suas ideias e valores.


Os adolescentes eram excluídos e tidos como “imutáveis” pelo corpo docente que, em lugar de entender, apoiar e até mesmo somar ao trabalho que começava a ser desenvolvido, contrariamente, tentava minar tal iniciativa, tendo-a como inconcebível e inaceitável. A coragem, a persistência e a criatividade de Erin, no entanto, levaram-na a encontrar alternativas eficazes e potencializadoras frente às adversidades. Ardorosamente aplicada em seu ofício, acaba por torná-lo mais que isso, abraçando-o como uma causa.


Suas iniciativas exitosas se deram a partir de elementos fundamentais: a credibilidade, a confiança, a palavra e a oportunidade dada àqueles que não tinham voz e nem vez na vida, na cultura e na realidade sociopolítica onde estavam imersos. Desde cedo, receberam abandono, (pré-)conceitos, desconfiança, violência... Erin, na contramão dessa dura condição, trabalha de modo inteligente a apresentação de novos valores, propondo-os para um modo de vida diferente do habitual. Valores são expressivos em relação às perspectivas presentes e futuras de qualquer pessoa. Davis e Oliveira (1994, p. 95) assim os expõem:


[...] os valores são fatores centrais na determinação de objetivos e projetos de vida e representam importantes norteadores do comportamento. Eles ajudam a ordenar o mundo e a orientar a ação individual no meio cultural, influenciando a forma de perceber e de significar as experiências que se vive. Pode-se, portanto, considerar os valores como um sistema de regras que definem, explicam e dão sentido à atuação humana.


Chama a atenção que, como professora, sua atuação é multifacetada, ela mesma afirma que “não é assistente social”, ao lidar com tantas situações angustiantes. Todavia, sua capacidade de observação e escuta, sua atenção e cuidado (de saber cuidar) aliados às palavras marcantes e à disponibilidade que abraça, favoreceram mudanças impressionantes na turma. Enquanto educadora, sua atuação transpassa o nível pedagógico. Se não é possível afirmar que tenha usado, deliberadamente, o conhecimento psicológico, ao menos é válido afirmar que seu trabalho, na prática, caracteriza-se como multidisciplinar: pedagogia, psicologia e serviço social aparecem mesclados em uma iniciativa inventiva e brilhante. Sua atuação facilita uma “virada” na vida daqueles jovens, exemplificando positivamente o que Tavares (2010, p. 126) aponta sobre a educação: “A relação professor-aluno pode ser um elemento facilitador da construção de personalidades autônomas ou perpetuador de uma relação de subjugação constante do que detém o saber sobre o que precisa adquiri-lo”.


Neste sentido, verificam-se, neste longa-metragem, diversas ferramentas utilizadas pela professora Erin a fim de provocar a construção de autonomia: os trabalhos dinâmicos em sala de aula; os diários; os livros; a visita ao museu do holocausto; sua convivência e interesse pelos jovens mesmo fora do espaço escolar; o mutirão organizado pela turma para custear a viagem da “heroína” personagem de um dos livros que leram (O diário de Anne Frank); com a consequente chegada e oportunidade de conhecê-la pessoalmente e ouvi-la. Além disso, e, sobretudo, o projeto do livro Escritores da Liberdade, feito em conjunto por todos os alunos, tendo por base os relatos dos seus diários, demonstra a dimensão a que chegou tal trabalho. Trabalho este simples e contagiante, através do qual adolescentes marcados por dura realidade sociopolítica puderam ser coparticipantes no próprio processo educativo e, até mesmo, protagonistas de um novo tempo em suas vidas e histórias. Novo tempo também para a escola (apesar de tudo) e, mais amplamente, para a sociedade local, tendo em vista a repercussão que ganhou tal iniciativa. Dessa forma, o filme nos apresenta uma experiência capaz de favorecer a autoestima e a capacidade de respeito por si e pelo outro. O que termina em abertura ao diálogo, convivência fraterna com o diferente e construção da autonomia.

Na autonomia, as regras não se apresentam mais como impostas por outros, mas como resultado de um acordo entre os participantes de um determinado grupo. O respeito às regras surge do consentimento proveniente do uso da razão e da necessidade do bem comum, da cooperação e da solidariedade. Na autonomia a noção de responsabilidade subjetiva, na qual é levada em conta a intencionalidade de quem executa a ação, é fundamental. Ser autônomo, moralmente significa ser responsável por suas ações. Ações estas decididas em pleno uso da liberdade (TAVARES, 2010, p. 119).


Educar não é um ofício como outro qualquer. A educação não deveria ser encarada como mercadoria ou como negócio simplesmente. Para muito além, educar pode ser encarado como arte; educação pode ser entendida como serviço capaz de transformar.

No que se refere à especificidade do fazer psicológico, temos com essa obra uma importante lição: ao psicólogo presente no contexto escolar cabe, dentre outras tarefas, a de ser alguém que colabore em potencializar nos alunos e no corpo docente as mudanças necessárias, favorecendo as transformações plausíveis em nível pessoal, institucional e social. Tarefa – devemos reconhecer – nada fácil, mas na qual, apesar de tudo, vale a pena investir. Para isso, é preciso cultivar a liberdade, assim expressa no dizer de Tavares (2010, p. 139):


Educar é uma oposição ao sentido de moldar, pois é, antes de tudo, favorecer o exercício da liberdade. Só pode fazer isso quem é livre. A mente aprisionada também amordaça, reprime. A mente livre voa e ensina a voar.

Como educar é favorecer a indagação, o questionamento, a busca do caminho próprio, só quem entende o direito do outro e o seu próprio encontra a verdadeira dimensão do ato de educar que é o exercício da reciprocidade, necessário a uma vivência social saudável e prazerosa e a uma cidadania livre e responsável.


Escritores da Liberdade é, portanto, uma obra cinematográfica inesquecível. Uma inquietante lição de vida e humanidade. Uma impressionante experiência educativa capaz de nos comover diante da transformação a que chegou uma turma de adolescentes, antes, desacreditados.


 

Referências:

DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos de. Psicologia na educação. 2. ed. revisada. São Paulo: Cortez, 1994.

TAVARES, Jardinete. O lugar do corpo na construção da autonomia moral e intelectual das crianças. Vitória: Cadernos de Pesquisa em Educação PPGE-UFES, vol. 16, n. 32, p. 111-143, jul/dez 2010.


ESCRITORES da liberdade. Direção: Richard LaGravenese. Produção: Danny DeVito, Michael Shamberg e Stacey Sher. Intérpretes: Pat Carroll, Patrick Dempsey, Jason Finn, Scott Glenn, David Goldsmith, Kristin Herrera, Blake Hightower, John Benjamin Hickey, Will Morales, Anh Tuan Nguyen, Vanetta Smith, Imelda Staunton, Hilary Swank, Deance Wyatt. Roteiro: Scott Frank. Fotografia: Jim Deaneult. Trilha Sonora: Mark Isham, RZA. EUA, c 2007. 1 DVD (123 min), widescreen, color. Produzido por Paramount Pictures.


 

*Wallace da Costa Brito é psicólogo, mestre em Psicologia (UFRRJ) e professor da UNIGRANRIO.

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