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FANTASIA E POLÍTICA

Leonardo Cesar do Carmo*


“Este filme foi feito para mostrar os métodos de terror de Hitler como em uma parábola. Os Slogans e crenças do terceiro Reich eram colocados na boca de criminosos. Por esses meios eu esperava expor essas doutrinas atrás das quais se escondiam as intenções de destruir tudo que as pessoas mais prezam”.

Fritz Lang na ocasião de exibição de O Testamento do Dr. Mabuse, em Nova York, 1943.


O cinema e a política são xipófagos. Os financista acham que as transações cambiais são irmãs siamesas das transações nos outros mercados imobiliários. Útero e feto. Resta saber se o bebê – a história – será bonito, saudável e querido pelos pais. Parafraseando comentário dos irmãos Lumière sobre o cinema: o capitalismo é uma invenção sem futuro. O cinema e o capitalismo seriam invenções sem futuro apesar de tantas viagens interestelares, guerras nas estrelas e despertares da força como uma alegoria de nossa capacidade para criar e demolir? O cinema e a política, duas belezas, ou podemos - como Maya Deren - transfigurá-los na plenitude da feiúra? O cinema e a política: irmãos fantasmagóricos. O cinema entre as nesgas da tarde e Kim Jong-un, o Darth Vader da bomba de hidrogênio.

A política trata dos sonhos mas se desenrola no mundo material. O cinema, da perspectiva de Siegried Kracacuer, nasce no mundo material e se desenrola em nossos sonhos. Cinema = matéria + sonho. Para Miriam Hansen, a teoria do cinema de Kracacuer parte do espírito de uma filosofia da história ou, mais precisamente, de uma teologia da história. Filosofia ou teologia da história: o cinema e a dimensão temporal da existência humana como existência sociopolítica e cultural. Na tela, teorias do progresso, da evolução e teorias da descontinuidade histórica; na sala escura, a estética do significado das diferenças culturais e históricas, suas razões e consequências. Talvez se possa dizer da teoria do cinema de Walter Benjamin ser uma teologia política. São inumeráveis os filmes que o anjo da história contempla estarrecido a pilha de destroços que se ergue até o céu sob o olhar atento das lentes dos filmes de ficção científica, o inconsciente ótico como uma testemunha tenebrosa da fantasia e técnica cinematográfica. Guerra e cinema, observa Paul Virilio na junção da morte da fantasia e na fantasia da morte. Matar, ocultar, configurar, submeter o horror do real às leis do espetáculo e do mercado cinematográfico. O cinema como sinônimo de progresso lembra o monólogo do coronel Kurz na pele de Marlon Brando. O horror...

O cinema e a política partilham de coisas comuns: o diretor, o argumento, o roteiro, os cortes, as angulações, os enquadramentos, os planos, a luz, o produtor, os atores, a montagem e esses componentes determinam a narrativa, ao modo historicista ou ao modo experimental. Maya Deren e Jane Fonda ou Doris Day e Angelina Jolie? As críticas de cinema de Kracauer operam no sentido da constituição de uma cultura de massa como objeto de, a partir das perspectivas cruzadas de uma filosofia da história e da crítica da ideologia, embora ela não se dê nos moldes esboçados por Adorno e Horkheimer. Jaeho Kang, professor da New School for Social Research, Nova York, distingue a crítica da cultura de Benjamin da teoria crítica enfatizando os atributos centrais da historiografia materialista esboçada nas “Passagens”. Este método pode ser enumerado assim: 1) um objeto da história é aquilo por meio do qual o conhecimento é constituído como o resgate do objeto; 2) a história degrada-se em imagens, não em histórias; 3) onde quer que se realize um processo dialético, estamos lidando com uma mônada; 4) a apresentação materialista da história carrega consigo uma crítica imanente do conceito de progresso; 5) o materialismo histórico baseia os seus procedimentos na experiência de longa duração, no senso comum, na presença de espírito e na dialética.

Talvez se possa dizer de Benjamin o mesmo de Kracacuer: o cinema como um meio material que salve ou torne possível a redenção da realidade física. A realidade física, o contexto histórico sob a sombra cinza do fascismo e nazismo, fantasmagorias das crises econômicas do capitalismo nos anos 1920, cujo cheiro exala dos cadáveres de Paris depois da passagem do Rambo islâmico. É possível fazer filmes após Auschwitz? A crítica de Jean-Luc Godard, observando que os campos de concentração não foram filmados, é antecipada por uma observação de Kracacuer que achou especialmente polêmico o sentimentalismo e o sadismo da versão feita pela Universal Films em 1927, de Uncle Tom’s Cabin, “porque ela nos lembra a luta dos negros pela libertação que não foi filmada”. Para Kracacuer, a preservação de um momento passageiro não pode nunca ser a emanação positiva da criação mas, ao contrário, captura o tempo apenas em sua negatividade, em sua deriva em direção à catástrofe, a única fonte da qual a redenção pode vir.

Nesses tempos de guerra e de pequenos soldados, Jean-Luc Godard surge como um pensador que interroga a política no cinema e o cinema na política, mediado pela técnica de apresentação da arte cinematográfica, se pudermos falar que tal coisa existe. Uma enumeração de filmes de Godard – aleatoriamente, Le Gai Savoir, Alphaville, Week End, Tout Va Bien, Letter To Jane, Nossa Música, Filme Socialismo e os quatro curtas-metragens que compõe De L’ Origine Du XXI e Siècle, The Old Place, Liberté Et Patrie, Je Vous Salue, Saravejo, todos em colaboração com Anne Marie Miéville - colocam o casal nesse vazio cinematográfico onde tudo pode e deve ser pensado e filmado. A ideia do cinema e da política em Godard não é nenhum mar morto, e de passagem lembremos os filmes do Grupo Dziga Vertov com a subversão radical do gênero cinema e política em O Vento do Leste. Penso cinema e política em Godard em Viver A Vida. No momento em que surge na tela a sequencia da prostituta assistindo O Martírio de Joana D’Arc pergunta-se: não é a própria figura de Joana D’Arca a encarnação histórica do cinema e da política? Joana D’Arc seria um exemplo da teologia cinematográfica de Kracacuer ou o exemplo da redenção da obra de arte no tempo messiânico de Benjamin?

Ao mesmo tempo, a enumeração destes filmes dispensa a citação da obra godardiana como um positivo da relação cinema e política. Pensamos exatamente o oposto: Godard problematiza o cinema, a política e a história. Parece até haver um atraso do cinema em relação aos outros termos. Ao final de Forever Mozart, o diretor de O Bolero Gatal senta-se solitário na escadaria, ao lado da sala onde o público assiste ao concerto de Amadeus. Ele não precisa estar na sala de concerto, assistir aos músicos, basta ouvir Mozart. Essa sequencia é antecedida pela abandono do público na première de O Bolero Fatal. Parece que o cinema não só esta aquém de Mozart como ainda não possui o seu próprio Mozart: o cinema ainda não se fez ouvir ou ver. Estamos distantes de uma revolução sonora que sintetize o som e a imagem revolucionários da política e do cinema. Já Saravejo, é ali na esquina.

No catálogo de apresentação do experimental Noticias da Antiguidade Ideológica: Marx – Eisenstein, de Alexander Kluge, há um texto do Godard no qual em 39 itens ele discute o como fazer filmes políticos e fazer politicamente filmes. Não se trata de didatismo, mas de ruptura com as regras do fazer e sim de inventar novas práticas políticas e cinematográficas. Os itens são como fotogramas na tela branca que pode ficar vermelha como o ar. Penso a relação entre Cinema e Política como um caminho de incertezas, felizmente.


 

*Leonardo Cesar do Carmo é historiador, mestre em Educação, e autor dos livros O cinema do feitiço contra o feiticeiro e O Cinema da Metafísica Bárbara, publicados pela Editora PUC-GO.

ESCRITOS
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