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Muniz Sodré e o declínio da esfera pública na contemporaneidade


Pedro Claudio Cunca Bocayuva*



Vivemos um ciclo social e ambientalmente regressista por força do "Estado Neoliberal", do fetichismo da mercadoria, da sociedade do espetáculo e dos simulacros, com acumulação da riqueza e do poder na sociedade em rede. Estamos diante da fragmentação e do desamparo com a dominação necropolítica.


A crise de representação se manifesta na atualidade como "falência da mediação liberal". Este processo se liga à financeirização, à guerra e aos vários novos extremismos de potencial totalitário/fascista, à morbidez e à crueldade no cotidiano, com: expulsão, encarceramento, descartabilidade, tortura e extermínio. Capturas e agenciamentos são gerados no ciberespaço via "afetos tristes", com a ativação da fúria do narcisismo das pequenas causas. A recombinação de tecnologias de poder se materializa pela subjetivação através do "fake", da repetição negacionista do absurdo, da pós-verdade, das normalizações, da narcotização, do consumismo e da ativação de uma racialização que desencadeia processos de "limpeza étnica".


No plano social e ambiental, as arquiteturas da destruição resultam em formas crescentes de processos de exceção, face às indústrias do medo e da catástrofe. A "midiatização", a criminalização e o "gozo punitivo" se ampliam na "sociedade incivil". A banalização da crueldade e os modos de agir violentos são tentativas de lidar com o sofrimento pela pulsão de/para um certo "desejo de matar" no contexto do colapso da pós-modernidade. Como repensar as formas da crise orgânica da modernidade, com ênfase na temática do trauma e da catástrofe com o olhar biopolítico, genealógico, ao mesmo tempo em que revisitamos a dialética negativa, na chave do caos sistêmico, dos processos moleculares e dos efeitos em cadeia dos desastres, dos traumas, da exceção e do excesso do que chamamos catástrofe?


A "ideosfera", a mobilização dos afetos pelas redes, as narrativas, as performances e a hiper-visibilidade dos conflitos têm exigido um retorno à busca de "novos paradigmas" acerca dos modos de produção de processos de luta cultural/simbólica, tendo em conta as disputas de produção de sentidos, de imagens e espetáculos. Os agenciamentos humanos-maquínicos, cibernantrápicos, promovem tipos novos de desigualdade e constroem novos muros e "fronteiras". Como apoiar um retorno ao território com a construção de uma cena pública, de um imaginário que sustente uma mutiplicidade de alternativas?


O Brasil é um campo fértil para observarmos e agirmos criticamente sobre estes processos da destruição globalitária, em especial no quadro aberto pela pandemia, pelo "pandemonio" e pelas mutações tecnológicas da desmaterialização, que impulsionam a economia do saque da acumulação primitiva permanente . Penso que ao lado da literatura da (de)colonialidade, da teoria crítica/Frankfurt, da genealogia, da microfísica e do biopoder, todas as relações entre corpo, território, subjetividade e tecnologia têm exigido uma observação das articulações entre "multidão e rede", entre luta molecular, luta molar, entre guerra de posição, guerra de movimento/manobrada.


A noção de emancipação e as teorias feministas, "queer" e decolonial precisam se colocar diante das complexidades da mundialização e da contrarrevolução com seus efeitos espaciais nas singularidades do cotidiano e dos lugares.


Estamos lidando com a "ideosfera" no contexto de uma crise orgânica prolongada. O momento é de formar blocos políticos, construir alianças e frentes únicas como estamos fazendo no Brasil. Desta forma, vamos furando bolhas ao disputarmos fluxos de informação e comunicação, para gerar agenciamentos do poder sobre as máquinas do hiper-real, ao criar uma nova cena pública. Na crise de representação, o furar bolhas se tornou uma exigência para tentarmos reverter o ciclo do colapso da mundualização das fórmulas da "revolução passiva". Os livros de Muniz Sodré "As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política" e "A sociedade incivíl: mídia, iliberalismo e finanças" são livros essenciais para repensarmos a batalha pela direção cultural, intelectual e moral, no cotidiano em mutação e na tendência para a catástrofe.


 

* Pedro Claudio Cunca Bocayuva é professor do Mestrado do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ. Coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade e Território.

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