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PLANTANDO BATATAS EM MARTE

(a respeito de The Martian, de Ridley Scott)


Leonardo Carmo*


A meu ver, o equívoco maior do filme PERDIDO EM MARTE é a tradução. The Martian não possui no Brasil o mesmo apelo que nos Estados Unidos. "O Marciano”, tradução literal, narra a saga da sobrevivência de Mark Watney no Planeta Vermelho.

Desde H. G. Wells, os marcianos têm alimentado o imaginário no que diz ao contato e confronto com extra-terrestres. A célebre transmissão radiofônica A Guerra dos Mundos, feita em 1938 pelo Mercury Theater on The Air, de Orson Welles, causando pânico nos Estados Unidos, foi a primeira versão midiática desse fenômenos que podemos chamar terror ao que seria uma reforma agrária cósmica, caindo a Terra em mãos de alguma potência alienígena.

A versão mais recente para o cinema é de Steven Spielberg (2005), colocando Tom Cruise como salvador da pátria e do mundo. A versão mais irreverente é do diretor Tim Burton e o humor negro de Marte Ataca. Essa versão, no entanto, não caiu nas graças do público que parece não partilhar do senso de ironia dos marcianos – fictícios, obviamente. A biologia é o grande trunfo do homem também em Independence Day.

Agora é a vez de Ridley Scott com a adaptação do livro de Andy Weir. O diretor, em 1982, nos deu Blade Runner, O Caçador de Andróides. O filme, considerado por muitos como o maior filme de ficção científica jamais feito, discute o sentido da vida e da morte. Mas, se Ridley Scott não corre o risco de bater a si mesmo com The Martian, a narrativa não é menos filosófica: a sobrevivência humana fora da Terra em condições, digamos, não muito amistosas.

O filosófo Mark Rowlands é o autor de Scifi = Scifilo – a filosofia explicada pelos filmes de ficção científica.  Em inglês, o termo Science Fiction (ficção científica) é abreviado pelos fãs para sci-fi. O autor faz uma brincadeira ao se referir aos filmes mencionados no livro – o dilema mente-corpo com O Exterminador do Futuro, moralidade com a série Aliens e o livre arbítrio com Minority Report, a nova lei, entre outros – e afirma que temas filosóficos são encontrados em filmes B tanto quanto em Bergman ou Godard. Petulante, Mark Rowlands cita em seu favor o filósofo Ludwig Wittgenstein que adorava assistir a filmes “tolos”.

Em resumo, a chamada Sci-phi é um novo gênero que lida com as questões, disputas, problemas e argumentações filosóficas através da ficção científica. E aqui retornamos ao The Martian, abordando-o não como discussão filosófica, mas como um documento histórico – lembrando que no cinema os limites entre ficção e realidade são tênues, pelo menos desde os irmãos Lumière e Mèliès. Um documento histórico forjado a partir do cinema cultivado pelo gênero ficção científica.

Abandono – aparentemente – a discussão das relações entre cinema e história, como são tratadas classicamente por Marc Ferro, para discutir o visível e o não-visível nos filmes comerciais, e não só em obras como Dura Lex, de Lev Kulechov, 1933, no planeta stalinista. Ou seja, estou partindo diretamente para a vulgarização da história afirmando que ela se manifesta tanto no construtivismo soviético, no cinema novo, no cinema de invenção, quanto no comercialismo de Hollywood.



A história exerce fascínio no senso comum. Para muitos, trata-se de uma ciência com a capacidade de reconstituir o passado tal como ele de “fato” aconteceu. Explicar que história é uma “construção” e não algo “dado” a priori é meio que defender uma tese acadêmica. Mas, defendo, a história é o pano de fundo de Perdido em Marte. Pretendo explorar dois ou três pontos defendendo o meu argumento.

omeço afirmando que o primeiro marciano é humano! Daí o título do filme. Já que ainda não entramos em contato com marcianos, pelo menos no mundo real, o astronauta norte-americano Mark Watney é o primeiro deles. A personagem discorre sobre tratados internacionais e a tomada de posse em águas nunca dantes navegadas. Os historiadores conhecem isso no contexto da doutrina do “Destino Manifesto”, que assegura aos EUA o direito de colonizar o mundo por ser o povo escolhido por Deus para levar a democracia mundo e, agora, galáxia afora.

O discurso político do marciano Mark Watney é sintonizado com a nova ordem econômica mundial. Parte da crítica vem buscando os defeitos do filme como os seus principais erros. A meu ver isso é bobagem. Meu segundo ponto é que Mark Watney inaugura a pré-história humana em Marte. O marciano é um antropoide do gênero homo sapiens sapiens.

A maioria dos filmes de ficção científica ou filmes sobre o passado referem-se (se enxergarmos suas imagens invisíveis, e aqui estou usando o jargão de Marc Ferro), ao presente. Tenho discutido isso em filmes como Wolwerine, o guarda-costas do capitalismo, Elysium, o futuro entre a fome a fúria, e a série Jurassic Park, ensaios sobre a história na época de suas técnicas de reprodução digital.

Mark Watney é o hominídeo galáctico abrindo as fronteiras da nova colonização espacial sob a batuta da NASA. O forte do filme é quanto mais irrealista ou rico em erros, mais interessante ele se torna. Pensemos um pouco no homem há 500 mil anos, peludo, caninos enormes, apavorado com a noite e depois maravilhado com a primeira ferramenta – o osso de 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, 1967 – e daí para aquela espécie de estufa onde Mark Watney planta batatas.

Hoje, novos fósseis descobertos bagunçam a evolução humana. Há 1,5 milhões de anos, tínhamos um homínida primitivo como o Homo erectus. Mark Watney, nosso caríssimo homo sapiens sapiens descende de uma nobre linhagem. A sobrevivência em Marte é uma metáfora da degradação da Terra evocada no poema The Waste Land, de T.S. Eliot. Se até agora em nenhum exoplaneta foi descoberto a vida como nós a conhecemos, o homem é o primeiro marciano, jupeteriano, saturniano ou o que seja.

Outro ponto significativo do filme é a seleção de música chiclete da comandante da missão. Uma seleção de hits da Billboard, conhecida pelos habitantes de Nova York e dos moradores da velha Campininha das Flores, uma espécie de bairro marciano de Goiânia - mas isso é uma outra história. As músicas transportam o espectador para o ambiente e a tensão psicológica de Mark Watney, fazendo o público vibrar e torcer por ele. O bacana nos filmes de ficção científica é a sensação de realidade, mais sensível que a própria realidade na maioria das vezes aborrecida e em preto e branco.

Mark Watney é o neolítico high-tech. Se as primeiras civilizações são as civilizações de regadio, o Egito e a China, por exemplo, permitindo a sobrevivência do homem às margens dos grandes rios, não por acaso o programa espacial chinês entra como coadjuvante da missão de resgate do homem perdido em Marte. Mark Watney, atendendo ao apelo da sociedade do espetáculo, é chinês, indiano, norte-americano. A Rússia no filme é colocada de escanteio, fora da nova ordem cósmica mundial. Outros criticam o filme pelo seu apelo boboca de auto-ajuda. Mas, o que são as religiões em geral desde os tempos mais primitivos até o capitalismo como religião?

A magnífica solidão de Marte sendo conquistada aos poucos pelo astronauta, cortes rápidos, paisagens de céus escuros onde se esconde o abismo infinito, alimentam o sonho ou delírio da conquista do espaço cósmico. Mark Watney construiu a primeira ponte Terra-Marte. E a maioria dos humanos nem mesmo sabe como plantar batatas na Terra. Imagine-se em Marte!


 

* Leonardo Carmo é historiador, mestre em Educação, e autor dos livros O cinema do feitiço contra o feiticeiro e O Cinema da Metafísica Bárbara, publicados pela Editora PUC-GO.




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