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O QUE NOS SALVA DA LOUCURA?

Marcelo Fonseca*


O que vemos só nos olha na medida em que nos deixamos implicar lá naquilo que nos olha. No sentido dessa implicância, partilhamos o núcleo profundo do terror do paranoico: ser olhado por “aquilo”. O olho mau, o “mal de olhar”, o mel do olhar, incrustado naquilo que nos olha. Perguntamos: O que nos olha? O que é isto que nos olha?

Como a função de ver se encontra no cerne questão, talvez possamos começar a tentar responder a partir da percepção. O que a percepção faz é cortar e suturar. O corte, ela o realiza sobre a massa que chega aos olhos em densos feixes de luz. Ela corta cores. Mas sobre esse corte, ela recorta cadeiras e mesas, árvores e pedras, céu e sol, pessoas e animais. Nessa primeira operação de corte e recorte, importante que se note, essas coisas não são ainda amarelas e vermelhas, cadeiras e mesas, árvores e pedras, pessoas e animais. Elas são apenas manchas e formas, que diferem entre si. Ao produto desse corte e recorte, sempre inacabado (porque nele cabem sempre novos recortes – como as pernas da cadeira, o assento, o encosto), eu o nomeio: significante.

A pergunta é feita ao significante, segundo a sua função: ele deve significar. A pergunta do paranoico (e a nossa), ela é feita ao significante, o “isto” daquilo que nos olha, acerca de sua realidade. Reformulemos, pois, a pergunta: ─ O que significa isto, o significante? Resposta: ─ Ele significa aquilo que estrutura, no âmbito do que estamos discutindo, “materialmente” a significação – é este o seu significado, que se confunde com o seu conceito. Quando particularizado numa forma – a forma de uma cadeira, por exemplo –, o significante, seu significado, o significado a ele conectado é a definição de cadeira, o seu conceito. Isso indica nossa primeira e mais comum tendência: ir ao dicionário, ou outro qualquer código, como forma de responder à pergunta acerca do significado do que quer que seja – como já sugeri, da realidade do que quer que seja. Por si só, esta forma de responder tem lá seu limite, como veremos a seguir, mas existem casos em que este caminho de resposta simplesmente não é possível, como, por exemplo, quando a pergunta acerca da significação se dirige a uma piscadela de olho cuja forma possa torná-la distinta do modo regular de piscar os olhos.

O que estou sugerindo é que, em alguns casos, devemos resistir, tanto quanto resiste o paranoico, à tentação da resposta “consistente”, “correta”, que nos fornece o dicionário ou outro código qualquer, pois os códigos (inclusive o dicionário) até certo ponto fornecem respostas que se não são falseantes, certamente são por demais restritivas, e nós veremos o porquê.

Voltemos à percepção e seus cortes e recortes. Eles sempre, e a despeito de qualquer gestalt, nos oferecem uma profusão de possibilidades, e esta profusão traz consigo outra profusão: a das possibilidades de ordenamentos do que se cortou e recortou, ordenamentos que proponho designar como arranjos morfossintáticos, diferentes possibilidades de montagem do material produzido pelo corte e recorte, arranjos morfossintáticos que na prática determinam posições, que são significantes, e, entre o material “relacionado” entre si segundo suas posições, suturas e novos recortes, agora recortes de conjunto. A partir dessa ordem, que é a forma como aquele que pergunta acerca da significação recorta e sutura os significantes, temos o princípio que rege a significação. Ou, em outras palavras, o sentido brota do arranjo, que a partir daqui proponho chamarmos de discurso, visto estarmos diante da formação mínima que é o ordenamento do significante, isto é, o discurso, a “fala”. Se, a partir disso, voltamos à pergunta acerca do que significa o significante particularizado, diríamos que ele significa segundo a sua posição relativa no discurso, sendo o significado assim obtido eminentemente provisório e, por isso mesmo (mas não só), ambíguo, pois se encontra submisso “aqui e agora” ao corte, o recorte e a sutura, que determinam o ordenamento disso, sua ordem interna. É essa provisoriedade que o dicionário e os outros códigos desviam, obscurecem, pois eles tendem a restringir o problema da significação ao par significante/significado fora do ambiente do discurso, ou seja, eles oferecem o signo como formação estável, de “vínculo”, entre significante e significado.

Um modo bastante comum de nos referirmos à massa dos signos assim obtidos, especialmente aqueles que se recortam sobre a massa propriamente material, física, em seus ordenamentos preferenciais (isto é, ordenamentos guindados à categoria de código, de lei), é com o termo de “realidade”. Conferir aos signos sintaticamente ordenados o estatuto de realidade apoia-se na pretensa solidez do vínculo entre significante e significado, o que depende da cristalização da ordem sintática que estrutura por dentro o discurso no interior do qual tal significante corresponde a tal significado, de tal maneira que os signos só podem ser tomados como “manifestação” da realidade pelo privilégio do código, entendido como garantia de que as coisas serão as mesmas (ou seja, diante de tal significante só se apresentará tal significado) amanhã e depois, que os objetos serão sempre usados do mesmo modo, que as pessoas (como signos) desejarão e temerão sempre as mesmas coisas.

Assim, quando dizemos que uma cadeira é real, perdemos de vista o fato de que a realidade da qual ela é indubitavelmente capaz depende da manutenção do significado a ela atrelado, atrelado à sua forma. Tal manutenção depende de outra manutenção, a da posição da cadeira no universo dos objetos em geral, posição diretamente relacionada com o cumprimento, pela cadeira, da sua função – se ela for, por exemplo, colocada de cabeça para baixo, presa no teto ou posta sobre um pedestal de escultura no interior de uma galeria de arte, seu significado se desprende imediatamente dela. Isso demonstra a provisoriedade dos significados em geral ao mesmo tempo que demonstra certa fragilidade, certa “inconsistência”, na realidade mesma. Ao esbarrar nessa “inconsistência” o paranoico (e alguns de nós) está autorizado a desconfiar, a desconfiar de uma intencionalidade por detrás da trama, da tessitura, da realidade. Em um único movimento, dissolvem-se a consistência da realidade, bem como dissolve-se qualquer sentido de natureza. Tudo se estrutura na trama e pela trama.

E por que nós outros não enlouquecemos na mesma direção do paranoico? Porque, creio, conseguimos suportar a cisão entre o significante e o significado e, a partir da cisão, fiamo-nos menos no(s) significado(s) que no(s) significante(s). O que nos salva da loucura talvez seja o significante, o ancoramento no significante. Quanto ao paranoico, ele parece se agarrar desesperadamente a um significado, que dá sentido (delirante) à trama, um significado que se amplia e toma o campo do significante, se antecipa a ele como princípio (des)estruturante da “realidade”, um significado que tem valor de Real, daí a sua imobilidade. Defino, então, provisoriamente a paranoia como a invasão da realidade pelo Real ancorado no significado-chave, que traduz a suposta, pelo paranoico, intenção persecutória por detrás da formação da realidade.


 

*Marcelo Fonseca é artista visual, mestre em Letras e doutor em Artes (EBA-UFRJ). Professor da FACHA - Faculdades Integradas Helio Alonso.

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