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OS HOMENS PASSAM COMO AS FOLHAS CAEM

Diogo C. Nunes*


Diz-se que no cárcere, já doente, Gramsci viva repetindo a seguinte frase: “o tempo é a coisa mais importante; é apenas um pseudônimo da vida”. O tempo é um pseudônimo da vida, repito, e me parece que cada um de nós, a pensar nos vários instantes de urgência a que já fomos acometidos, havemos de concordar. É com essa frase, dita pela lucidez que somente os moribundos e convalescidos são capazes, que quero começar essa breve reflexão, esperando que ela se afigure como uma espécie de epígrafe.

Na obra dita fundadora da civilização ocidental, Ilíada, encontramos a demarcação do caráter essencialmente temporal da vida humana. No canto sexto, quando perguntado pela sua origem, ou geração, Glauco respondeu:

Símile à das folhas,

a geração dos homens: o vento faz cair

as folhas sobre a terra. Verdecendo, a selva

enfolha outras mais, vinda a primavera. Assim,

a linhagem dos homens: nascem e perecem.

Glauco altera o sentido dado a genéen – geração – que, usado a princípio “como significação de ‘estripe’ ou ‘raça’, no relato sobre os antepassados, ganha, em sua fala a outra acepção possível: ‘geração’ para introduzir o tópico da brevidade da vida”. (Trajano Vieira. Ilíada Recriada).


O poeta Semônides se referiu àqueles versos homéricos como “o que de mais belo escreveu o homem de Quios”, anotando na sua Elegia: “os homens passam como as folhas caem”.


Estamos certos de que a vida é efêmera. Mas “efêmero”, aos gregos, não tinha o sentido depreciativo que tantas vezes lhe atribuímos no contemporâneo. Significava, todavia, bem mais que algo passageiro. Ephemeros: Epi, sobre; Hemerai, dias. Efêmero remete à ideia de que “o homem depende dos seus dias” (Cf. Lloyd. O tempo no pensamento grego). Os homens são efêmeros porque inacabados, incompletos; porque sua morada, seu êthos, é o tempo.


"O êthos do homem é o seu daímôn", escreveu Heráclito. “O termo êthos insinua justamente o modo humano de habitar a si mesmo, e, o daímôn, de destinar a si mesmo” (Miguel Spinelli. Sobre as diferenças entre éthos com epsílon e êthos com eta). Destino, assim, que não é propriamente um telos, ou seja, um ponto-de-chegada, um fim, mas, antes, expressão de um arbítrio interno, do animus, da potência. Porque efêmero, o homem encontra casa no em-aberto dos seus dias, no inacabado da sua vida, no indeterminado do seu destino. Em suma, para a vida humana, tempo e espaço não constituem duas orientações de naturezas distintas: seu lugar é o tempo.


Cito o poema Son Los Ríos, de Jorge Luís Borges:

Somos o tempo. Somos a famosa

parábola de Heráclito, o Obscuro.

Somos a água, não o diamante duro,

a que se perde, não a que repousa.

Somos o rio e somos aquele grego

que se olha no rio. Seu semblante

muda na água do espelho mutante,

como o cristal que muda como o fogo.

Somos o vão rio prefixado,

rumo a seu mar. Pela sombra cercado.

Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.

A memória não cunha sua moeda.

E, no entanto há algo que permanece.

E, no entanto, há algo que se queixa.


Num ensaio sobre Faulkner, Sartre escreveu que “o infortúnio do homem é ser temporal”, distinguindo, aqui, tempo de temporalidade. Há um tempo cronológico, diz Sartre, que não se confunde com a temporalidade, própria do homem. A temporalidade, enquanto dimensão subjetiva da experiência do tempo, não tem a ver com as datas, ou com as demais demarcações quantitativas do tempo: a temporalidade é essencialmente qualificada, e, por isso, sinaliza nosso infortúnio. Infortúnio: in-fortuna, não-destino, destino-em-aberto. O tempo qualificado da temporalidade é ilógico, e, portanto, inquantificável. Sabemos todos que o prazer suspende o tempo; que as delícias dos encontros com os amigos passam “voando”, e que a palestra de 20 minutos do professor no seminário se arrasta por eternidades.


O que fazemos, portanto, quando insistimos em quantificar, mensurar, a experiência do tempo, é descaracterizá-lo no que ele tem de mais próprio e distintivo. Contrariando o que nos diz nossa experiência mais íntima, passamos a achar “natural” que calendários, ponteiros e agendas regulem nossos dias. Alguns até têm certeza de que o tempo pontuado pelos dispositivos quantificadores seja o “tempo verdadeiro”, ousando duvidar da temporalidade: “como é possível que tenha passado tão rápido?”, perguntam abismados; ou, “como pode?! Só se foram 5 minutos!”.


O que isso significa? – deveríamos perguntar. Ouso, aqui, ensaiar uma frágil hipótese: significa que, de algum modo, ao aceitar o tempo como limite, e/ou como “coisa” exterior à experiência, nos alienamos dele. Vou além: se o tempo é um outro nome para vida, a resignação ao império do tempo quantificado implica na desqualificação da própria vida. O tempo quantificado corresponde à vida desqualificada.


Aceleração, fragmentação e alienação dão o tom – e claro o compasso – do modo como vivenciamos o tempo no contemporâneo. Talvez por isso o termo “efêmero” nos remeta a algo de algum modo negativo. Ao experimentar o tempo como “falta de tempo”, realizamos a talvez mais cruel das alienações: a da própria capacidade de tratar a vida como potência. Por isso encerro minhas breves considerações com uma passagem de Agamben, presente em Infância e História, que diz: “a tarefa original de uma autêntica revolução não é jamais simplesmente ‘mudar o mundo’, mas também e antes de mais nada ‘mudar o tempo’”.


 

*Diogo C. Nunes é historiador, mestre e doutor em Psicologia Social. Professor do curso de Psicologia da UNIABEU Centro Universitário e assessor pedagógico da ENSP/Fiocruz.


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