Diogo C. Nunes *
Em fins dos anos 1960, Herbert Marcuse escreveu um pequeno ensaio, A Critique of Pure Tolerance, traduzido para português como A Tolerância Repressiva, observando que “o que hoje é proclamado e praticado como tolerância está servindo à causa da opressão”.
Com a intenção de argumentar em favor da tolerância (capaz de “eliminar a violência” e proteger “o ser humano e os animais da crueldade”), Marcuse vê-se obrigado a operar a distinção entre uma tolerância libertária (que seria “um fim em si mesmo”) e uma tolerância repressiva (“que fortalece a tirania da maioria”). Escreveu ele:
“A tolerância é estendida às políticas, às condições e aos modos de comportamento que não deveriam ser tolerados porque eles estão impedindo, se não destruindo, as chances de se criar uma existência sem medo e miséria”.
Colocamos o paradoxo em forma de perguntas: se a tolerância objetiva eliminar a violência, o medo, a miséria e a crueldade, deve-se tolerar práticas e discursos que sustentam a violência, o medo, a miséria e a crueldade? Em outros termos, tolerar o intolerável não inviabiliza a própria tolerância? Ou: a tolerância, levada às últimas, não elimina a si mesma?
Numa sociedade em que o “normal” é a violência (ou em que a “normalidade social” se sustente em práticas diversas de exclusão, opressão e segregação), é a própria normalidade que se apresenta como intolerável. O discurso da “tolerância”, como um apelo à conformidade, à manutenção da ordem, perverte o combate à violência e à crueldade.
O tema da "tolerância religiosa" é exemplar. A história e a psicanálise nos mostram como há um agressividade inerente às identidades e aos vínculos religiosos, em particular aqueles baseados na distinção Eu / outro, bem / mau. E o modo como se reage a tais violências pedindo "tolerância" parece apontar a uma negação ao dado de que a passagem ao ato - da projeção à eliminação do diferente - é somente um passo, e um passo necessário, e lógico, daquele discurso violento. Essa negação parece crer que a violência da intolerância seja um desvio, passível de ser combatida por pedidos de "empatia". Passamos da hora de levar a sério a interrogação se o pedido de tolerância não é uma forma de humilhação. A fragilidade da democracia, exposta hoje em sua crueza, tem revelado o quão tolerantes temos sido: toleramos Eduardos Cunhas, Marcos Felicianos, .... Bolsonaros..., e outros tantos de semelhante estripe que se aparelham no Estado, permitidos que são pela própria democracia. Como foi montada, nossa democracia teve de acolher seus inimigos, dando voz aos apologistas da censura e aos operadores da morte, salvaguardando a integridade dos defensores da crueldade. No combate à intolerância estamos indo muito bem. Representando cinismo e apatia com a máscara desgastada da "tolerância benevolente" que pede "empatia" ao carrasco, damos aula de como tolerar o intolerável.
É decerto vasta a literatura que nos responde a esse impasse afirmando que a defesa da paz e da liberdade não deve sucumbir ao seu oponente, ou seja, que a defesa da tolerância "como fim em si mesmo" (entenda-se: cuja finalidade é a vida na liberdade dentre vidas igualmente livres) deve manter-se firme na sua posição contrária a qualquer sorte de violência. O que essa posição (válida e legítima de diversos modos) já nos trouxe como risco é, que em tempos de uma "catástrofe realmente existente", tolerar o intolerante tem nos custado a própria possibilidade de existência da tolerância. No limite, ela põe em risco a vida mesma daqueles que podem por ela.
*Diogo C. Nunes é historiador, mestre e doutor em Psicologia Social. Professor do curso de Psicologia da UNIABEU Centro Universitário e assessor pedagógico da ENSP/Fiocruz.
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