Lina Raquel de Oliveira Marinho*
Atualmente, quando penso a sociedade do trabalho no capitalismo, me lembro imediatamente do nosso índio Macunaíma: “.... Ai, que preguiça!”. Macunaíma é o personagem que dá nome a um romance de 1938 do escritor brasileiro Mário de Andrade. É um personagem recheado de elementos e características folclóricas brasileiras, assim considerado como um anti-herói ou um herói sem caráter, justamente porque, dentre outras coisas, questões, lendas e aparatos linguísticos, subverte as máximas modernistas da época e que se avolumavam no Brasil e na nossa sociedade.
Macunaíma é um índio, não por acaso, que rejeita, dentre outros elementos da modernidade, a sua sociedade do trabalho industrial e da racionalidade técnica, aos moldes como esta é estabelecida e definida no que concerne a expropriação da propriedade privada, o distanciamento do artífice do seu produto, a exploração, a dominação, a alienação. Com isso, o personagem traz consigo o clássico jargão, também atribuído ao índio no Brasil, que na teoria não haveria se deixado escravizar, de que o índio era preguiçoso para o trabalho. Assim, muito bem se coloca ao longo do romance o nosso índio Macunaíma: “--- Ai, que preguiça!”. Vale ressaltar que na língua indígena o som “aique” significa ou representa preguiça, ou seja, Macunaíma era duplamente preguiçoso! Isto para dizer da própria resistência e negação em relação aos desdobramentos modernistas no Brasil, havia à época, e como descreve o romance, um grande fascínio pela cidade grande, mais especificamente na figura de São Paulo, assim como pela máquina, pela indústria, mas não passavam despercebidos os malefícios de tal “desenvolvimento”, e aqui entre aspas pois em nada era holístico, que dirá e ao mesmo tempo sociopolítico ou sociocultural.
Dentre outras críticas, como esta já posta em relação à sociedade do trabalho e sua organização, por vias de sua preguiça, criticava-se também a própria deserotização da vida, em termos inclusive mais tarde consonantes com a própria análise e conceituação de eros elaborada por Marcuse em sua obra Eros e Civilização. Tudo isto por vias de uma existência cada vez mais aos moldes da realidade industrial e do autômato produtivista. Por isso, além de preguiçoso, nosso personagem gostava muito de “brincar”; “brincar” com as mulheres, com os encantos da vida, com esta pulsão de vida, com o seu próprio eros: elementos e comportamentos capazes de acessar os prazeres reais e mais subjetivos de se estar vivo. O jargão deste nosso personagem fez-se, portanto, bastante simbólico, traduzindo em tempos de instauração da modernidade no Brasil a real e concreta “preguiça” que hoje também e ainda temos da nossa sociedade do trabalho no capitalismo, uma possível “preguiça” muitas vezes crítica que questiona as nossas vidas e atividades no mundo do ponto de vista dos autômatos nos quais nos transformamos.
Isso porque há tempos nos distanciamos de algumas das dimensões de nossa vida ativa mais erotizadas, seja a obra (work), seja a ação. Hannah Arendt, em A Condição Humana, destaca a necessidade ativa dos homens de estarem presentes em si e naquilo que vai se constituindo por suas vidas no mundo, a partir da consciência subjetiva da qual dispõem e da consciência em torno desta consciência, o que torna o homem inclusive temporal, cada vez que apreende conscientemente seu próprio fluxo de consciência e temporalizador, capaz de organizar o tempo em torno de sua existência.
A verdade é que uma vez vivos, em nossos aspectos mais biológicos, estamos condicionados ao trabalho (labour), atividade tal responsável por nossa manutenção orgânica e dedicada à produção e consumo de utilidades para suprir tais necessidades. Uma vez conscientemente temporais e mortais, estamos condicionados à obra (work). Aquilo que assegura nossa mundanidade, nossa marca no mundo, nossa presença registrada para os outros em novos tempos, aquilo que torna nossa existência no mundo mais amistosa, as obras tem por intenção facilitar a apropriação do mundo e da natureza pelo homem e suas peças são trocadas em mercados de trocas conforme suas utilidades e as necessidades de apropriação de cada sujeito, e com base nestes elementos são valoradas. Por fim, nossa pluralidade nos condicionaria à ação, momento da existência mediado exclusivamente pelo discurso e por um estar presente ao redor de muitos outros sujeitos singulares, momento liberto de toda e qualquer mediação material a decorrer pelo desejo das re(a)lações e possibilidade de acesso aos muitos “entres” particulares de cada relação, com finalidade de simplesmente viver a delícia de ser quem se é e potencializar isto em torno da possibilidade de promoção de um bem-estar ético e coletivo, uma experiência política nata (ARENDT, 2013).
Acontece que o desenrolar histórico de nossas prioridades tomou outros rumos. Desde o fenômeno da secularização da vida, passando pela experiência da racionalidade técnica instrumental, da industrialização, do avanço da tecnologia até os auges do capitalismo financeiro, nossas escolhas e decisões estiveram focadas em mais que atender as nossas necessidades de vida pelas vias do labour e/ou do work, e de viver a liberdade e a igualdade da ação na polis. Interessados em acumular o valor possível gerado pelas atividades do work, transformamos tudo em obra e seus produtos. Quando supridas as necessidades, criávamos mais necessidades, e quando já nem podíamos criar mais necessidades irreais, decidimos que existiríamos de produzir e gerar valor para acumular valor para simplesmente produzir e gerar mais valor. Passamos a existir e funcionar em prol do valor e do valor que podemos gerar. Ou seja, é sob as bases produtivas e a lógica da sociedade do valor que se estabelece a sociedade do trabalho no capitalismo, aquela que asseguraria a produção e o acúmulo desejados de valor, para simplesmente empilharmos cifras de valor. Todas as outras dimensões de nossa vida ativa, o labour, quero dizer como cuidamos de nossas necessidades orgânicas pessoais, e a ação, passaram a estar condicionadas pela necessidade naturalizada de se produzir e gerar valor (JAPPE, 2014; KURZ, 1998).
Muitas são as contradições internas que se desvendam em torno desta sociedade: a sua permanente liberação de trabalho com finalidades seja de labour ou de work, mas sempre a atividade única humana capaz de gerar o tal valor, e o esgotamento natural do meio ambiente explorado, a impossibilidade de se expandir geograficamente e de se extrair recursos finitos, ilimitadamente. As inúmeras crises do capitalismo, cíclicas ou estruturais, jamais são analisadas sob estes prismas destas contradições internas do capital, e é por isso que vemos e acompanhamos de maneira tão naturalizada quanto toda esta lógica, iniciativas políticas, da ordem do que poderiam ser nossas ações pelas vias do condicionamento da pluralidade em busca do coletivo nesta real dimensão de vida ativa, medidas de real e expressa resistência sistêmica, ou seja, a luta interna que a própria sociedade do valor trava consigo para poder se manter e seguir operacionalizando as vidas pela lógica da acumulação contínua de valor. É por isso que atualmente presenciamos iniciativas de leis e decretos no que concerne a terceirização das atividades fins das empresas e a redefinição do trabalho escravo no Código Penal brasileiro.
Isto porque as empresas dependem do trabalho humano para gerar valor, mas ao mesmo tempo vêm acumulando cada vez menos valor que o valor anteriormente acumulado a cada montante produzido e mercantilizado. Isto passa a exigir das empresas redução de custos para gerar igual ou aparente maior valor a cada montante produzido, não porque haja valor maior de fato naquilo que estamos produzido diante inclusive de (a)necessidades. Já não se trata mais nem de necessidades forjadas ou irreais, mas de necessidades nulas desde sempre, um efeito propriamente ex tunc, cujos produtos fazem só entulhar a sociedade de consumo da ilusão da compra e o planeta de lixo, simplesmente para que esteja salvaguardada sua acumulação de valor, razão de seu existir. Os trabalhadores terceirizados terminarão custando menos às empresas em termos de encargos e direitos trabalhistas. Já a redefinição daquilo que se entende por trabalho escravo no Código Penal visa assegurar que os termos “jornada exaustiva” e “condição degradante de trabalho” não sejam ou estejam postas como análogas ao trabalho escravo o que por lei no Código Penal implicaria a desapropriação dos imóveis rurais nos quais tais condições de trabalho fossem detectadas, sendo os imóveis entregues à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem indenização ao proprietário. Este projeto vem sendo proposto pela própria bancada ruralista. A precarização das condições de trabalho e da vida como um todo é a grande marca dos nossos tempos mais recentes. É ela quem financia a sociedade do valor da atualidade; é ela quem garante a possibilidade do reinvestimento do valor para acumular valor; e é ela também que nos conduz pelas vias do nosso suposto projeto civilizatório e de desenvolvimento e progresso, à barbárie.
Referências
ANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 30. ed. Belo Horizonte: Vila Rica, 1997.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
JAPPE, A. Quelques bonnes raisons de se libérer du travail. In: Forum Social Pays Basque, 2005, País Basco. Krisis, 2005. Disponível em: http://www.krisis.org/2005/quelques-bonnes-raisons-de-se-liberer-du-travail. Acesso em 25 de janeiro de 2014.
KURZ, R. Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1998.
* Lina Raquel de Oliveira Marinho é doutora em Filosofia Política pela Universidade da Beira Interior - Pt., autora do livro Decrescimento e consequências humanas (ed. Gramma).
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